Pintura de fotos
Engª.Virginia Moura e Arqº.Lobão Vital
IV
O AMANHECER DE UM NOVO DIA
Acordou
sereno, com menos dores, a luz da manhã a querer romper-lhe as pálpebras, a
querer mover-se, com vontade de falar com a Mãe, sempre ali ao seu lado, de a
animar, dizer-lhe que tinha descansado!
Sempre
que o médico entrava pressentia-o aos pés da cama.
Naquela
manhã divisava-lhe vagamente os contornos em contraluz. A luminosidade da
janela, mesmo à sua frente, embora atenuada por uma frondosa árvore, continuava
a impedi-lo de abrir os olhos
Sentiu
necessidade de chamar o médico. Lá conseguiu esboçar um pequeno aceno com o
dedo indicador.
Não
queria acreditar no que se estava a passar. Era a silhueta do médico, o movimento
do dedo indicador, a vontade imensa de falar, de saber o que lhe tinham dado
para finalmente descansar.
Teve de
insistir no chamamento, o médico acabou por reparar, venceu uma certa resistência
e lá se aproximou:
Também
o médico estava cada vez mais perplexo:
-Então
o que é que te deu? Sabes que esta noite, não deixaste ninguém descansar nesta
casa?
O Luis
ouviu incrédulo. Não era possível! Dormira tão bem!
Só não
conseguia articular uma palavra.
O
médico apercebeu-se da dificuldade e continuou, para lhe dar tempo:
-Arrancaste
todos os tubos, querias levantar-te, ir embora, foi um pavor, ninguém te
conseguia segurar, ninguém teve descanso.
A Mãe,
ali sentada, só dizia:
-Assustaste-nos
tanto, filho.
Nunca
tivera uma noite assim!
A
excitação, a violência e o completo descontrolo do Zito representaram para ela a
agonia de um moribundo.
Quando
finalmente se imobilizou, foi o estertor final, o exalar do último suspiro.
Também
nunca tivera uma manhã tão inesperada!
Ali
estava o Zito a reconhecer tudo á sua volta, a mover-se e a querer falar. Não
lhe escapou a alegria dos companheiros de doença que invadiram a janela do
quarto e não escondiam a surpresa em contemplar um “ressuscitado”!
O Luís
passara a noite suspenso na linha que o separa da eternidade; interrompeu no
limite uma viagem sem regresso.
Sentia
agora o ar invadir-lhe os pulmões e dilatar-lhe o peito, começava a respirar o
ar que Deus lhe deu, á mistura com o tubo de oxigénio.
Retomou
a fala. A muito custo colocou a sua pergunta ao médico:
-O que
me deram para descansar?
O
médico atónito:
-Descansar?!
Já te disse que aqui ninguém descansou, nem mesmo tu!
Recomeçou
a viver.
Já podia
voltar-se e deitar-se de lado, as chagas das costas e das nádegas passaram a
dar-lhe mais sossego.
Participava
nas conversas com os pais, o irmão, com os companheiros de doença e com os amigos
que o visitavam.
Todos
lhe faziam a melhor companhia.
À
refeição nada lhe despertava mais o apetite que um bom copo de vinho branco.
Ganhara
novos amigos:
Destacava-se o Arqº. Lobão Vital, internado sobe prisão e vigiado pela PIDE, foi das melhores companhias e deixou-lhe a melhor recordação.
De uma serenidade que transmitia paz, uma cultura superior que muito me ajudou nas opções de leitura, um firme defensor dos " Direitos do Homem" e dotado do mais elevado sentido do humano.
O Luís logo que começou a levantar-se e a fazer pequenos percursos passou a visitar os companheiros acamados.
O Luís logo que começou a levantar-se e a fazer pequenos percursos passou a visitar os companheiros acamados.
Entre
eles destacava-se o Bélinho que há anos sofria de artrite crónica incurável
encontrando-se numa situação de dependência total.
Era
ainda jovem. Impressionava muito ver que as suas pernas e os seus braços mais
pareciam raízes de oliveira de tão retorcidos, agarrados a um tronco bem
constituído.
O
sofrimento dominava aquele homem noite e dia. Apesar disso, mantinha um sorriso
permanente, enigmático, sofredor, assim como a ironia duma revolta incontida.
Ao
entrar naquele quarto não sabia que dizer. Tudo lhe soava a ridículo: «Está
bom?»; «Está melhor?»; «Como vai isso?».
Nada
fazia sentido, até porque o Bélinho desejava a morte.
Optou por uma vaga saudação:
-VIVA!
Não
para o contrariar na sua vontade…também não faria sentido desejar-lhe o
contrário…
Agora
entendia melhor a dificuldade de muitas das visitas que recebia e que ali
ficavam, a olhar sem saberem que dizer.
Mas o
Bélinho era muito diferente de tudo que conhecia. Contava anedotas picantes e gostava ainda mais
de as ouvir. Perdia-se com a retórica do Amadeu que sem dó nem piedade fazia
humor da sua enfermidade, das deformações dos braços e das pernas. O Bélinho
ria desalmadamente, de forma desesperada, ao ponto de ficar todo encarnado, com
os olhos esbugalhados, chorava de tanto rir, babava-se, excitado dizia tudo
quanto lhe vinha á cabeça… um bando de palavrões.
Quando
finalmente se acalmava precisava que lhe limpassem as lágrimas e a baba e o
suor.
O
Amadeu também se encontrava ali internado. Era um jovem genial. Revelou-se
como: radialista, autor, compositor, declamador e ator.
Amigo
pessoal do mestre António Pedro fundou com ele o Teatro Experimental do Porto,
foi o seu braço direito, ajudou muitos atores, empurrando-os para o palco e
cantores, escrevendo-lhes as letras das canções.
A única
coisa que o Bélinho ainda conseguia fazer, a muito custo e com sacrifício, era
fumar um cigarro. A palma da mão, dobrada de tal forma para baixo, quase
encostava ao braço e os dedos retorcidos no sentido das costas da mão lá fixavam,
com grande dificuldade, o cigarro.
Não
conseguia evitar que a cinza caísse no peito, queimava-o mas não reagia. Era
uma dor menor relativamente ao tormento que nenhum analgésico atenuava.
Para o
Luís sobreviver foi a magia de um novo amanhecer, o encanto da descoberta do
chilrear dos passarinhos, da beleza dum malmequer, saborear um pão de trigo,
acabado de cozer e recheado de mel; adivinhar o que causa alegria aos que nos
rodeiam e evitar o que os entristeça; cumprimentar quem passa e fazer desse mesmo “o próximo”,
sem sentimentalismos, quer dizer, não permitir que o nosso amor ao próximo se
esvazie ao menor receio… ou ao adivinhar interesses pessoais ameaçados.
Nunca
entendeu como podia alguém desejar a morte? Talvez porque nunca experimentou o
sofrimento e a falta de esperança do Bélinho.
Outra
coisa será viver com espírito fraterno, optar pelo caminho que mais agrada a Jesus, como forma de estar preparado para, a qualquer instante, partir rumo à eternidade. Será
esse o caminho da felicidade?
O seu
médico assistente, o especialista convidado bem como o pai do Luís nunca entenderam
a sua recuperação. Também não o consideravam livre de perigo.
O
descanso após as refeições passou a ser feito numa espaçosa e aprazível varanda
refastelado numa cómoda espreguiçadeira, onde dava cor a fotografias a preto e
branco.
Os
exames radiológico continuavam a revelar sérios problemas nos brônquios e
pulmões. Tudo apontava para a necessidade de intervenção cirúrgica. Consistia a
mesma em remover duas a três costelas numa primeira fase e depois desta
intervenção se encontrar consolidada, haveria que remover mais duas ou três
costelas para que o pulmão ficasse devidamente acomodado.
Disto
resultaria um ombro mais alto que o outro.
O
médico assistente deu-lhe conta de toda a situação.
A resposta do Luís não se fez esperar:
A resposta do Luís não se fez esperar:
- Quanto
mais depressa for operado melhor.
Hesitante
estava o médico. O rapaz era muito novo para ficar assim deformado e decidiu:
- Vamos
esperar um mês e no final avalia-mos de novo a situação.
Decorrido
o mês a recuperação foi de tal forma que dispensou qualquer intervenção
cirúrgica.
Para
espanto de todos o Luís começou a fazer uma vida praticamente normal .
Na sua terra
natal já tinham mandado rezar uma missa pela sua alma!
Não
queriam acreditar que o Zito estava vivo.
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