terça-feira, 23 de junho de 2020

A LUZ AO FUNDO DO TUNEL


Acordei sobressaltado com o barulho do rodado do comboio sobre os carris. Olhei em volta procurando saber onde estava e também, se via alguém na carruagem que me ajudasse. Nem uma coisa nem outra. Levantei-me a custo, dorido dos bancos de madeira e lá descobri um passageiro, a quem perguntei:
- Já passou a Estação do Freixo?
- Ficou duas estações para trás!
Peguei na mala e precipitei-me para fora do comboio, com este já em andamento, Vargelas. Tantas vezes ali passei e não conhecia. Encarei com o Chefe da Estação e disparei:
- Imagine, adormeci e deixei ficar a Estação do Freixo de Numão para trás.
- O que deixou foi o comboio que vai para o Freixo… e nem é a próxima, mas a outra a seguir!
Fiquei sem fala. Como é possível ser tão estúpido. Lembrei-me que o meu pai mandara um homem esperar-me, perguntei se podia alugar um carro que me levasse ao Freixo.
- Aqui não há qualquer outro transporte além do comboio. Não temos estrada e o próximo comboio só passa amanhã de manhã.
-  Posso ir a pé?
- Lá poder pode, mas pelo caminho chega lá amanhã. Vale mais esperar pelo comboio.
- E pela linha?
- Pela linha nem pensar, é expressamente proibido.
- Mas não tenho alternativa… uma vez que o próximo comboio só passa amanhã... bem podia facilitar-me a vida! É que não posso avisar a pessoa que me espera no Freixo nem os meus pais.
- Eu não posso autorizar…é proibido. Além do mais não é nada fácil atravessar o túnel, rapidamente perde por completo a visibilidade. A ponte logo a seguir ao túnel é só para passagem do comboio, não a vai conseguir atravessar.
-Para o túnel eu tenho fósforos…
-Não lhe servem de nada, este túnel tem centenas de metros, após as primeiras curvas fica escuro como breu, com poças de água, ninhos de ratazanas, cobras, é mesmo muito perigoso. No seu lugar esperava pelo comboio de amanhã. Arranjo-lhe aqui onde dormir.
- Agradeço-lhe por tudo, respeito a sua proibição, mas permita-me tentar. Como não obtive resposta atrevi-me a dizer que precisava de avisar a pessoa que me esperava no Freixo de Numão, para vir ao meu encontro na Estação do Vesúvio.
- Vá lá e boa sorte. Eu aviso o meu colega do Freixo. Se não conseguir, não insista, é mais seguro desistir e dormir aqui.
O chefe da Estação tinha mais que razão. Depressa fiquei sem fósforos com noite escura. Por mais cuidado não evitava tropeçar, cai mesmo e esfolei as canelas. Mal conseguia avançar. As poças e a  possível existência de víboras atormentavam-me. Nada do fim do túnel. A mala era um grande estorvo e cada vez mais pesada. Finalmente surgiu metade de um minúsculo círculo branco, rapidamente aumentou e veio dar-me um novo ânimo, embora de pouca duração.
A satisfação de vencer o túnel esvaneceu-se ao primeiro olhar para a ponte que se seguia. Uma entrada em granito e tudo o resto em ferro ferrugento ligava as duas margens. A transição do granito para o ferro era assustadora.
Corrimão e pavimento meios podres, só os trilhos tinham continuidade. E não era possível evitar olhar para o precipício. Aqui a mala era o maior estorvo. Não valia o trabalho que dava, menos ainda o risco de me ver arrastado com ela. Ao pisar a primeira chapa, cedeu com o peso e levantou na outra extremidade. O corrimão de apoio abanava, era traiçoeiro, sempre a ver-me estatelado no lajedo ou no curso de água, o abismo era um íman que me forçava a vista.
Ao vencer a última chapa e colocar, finalmente, um pé em terra firme, cheguei ao paraíso. Deu para apreciar a paisagem, lindíssima, de tirar a respiração, Ninguém à vista. Eu, só, no coração do Douro Vinhateiro que se estendia até à fronteira – Barca de Alva.
Estávamos em meados do século passado. Senti-me duplamente reconhecido ao Chefe da Estação pela vista única que me rodeava, sempre com o Rio a correr ao meu lado.
É claro que estava apreensivo, não sabia se o recado para me virem esperar ao Vesúvio terá chegado ao destino. Daquela estação ignorava por completo o caminho para casa. Havia ainda muitas interrogações.
Mais um susto! Fortíssimos estalidos denunciavam a pancada no lajedo das fragas de pedradas projetadas com grande violência. Ao impacto seguia-se o eco e o silêncio.
Estranho! A serem pedras haveria o saltar das mesmas produzindo outros impactos, mas não!
Mais pareciam tiros. Eram mesmo tiros, com toda a certeza. Os caçadores atiram sobre tudo! Chegam a matar os próprios cães!!!  Assustado procurava os responsáveis. Não vislumbrava viva alma.
O sol caía, mais dois tuneis que deixavam ver claramente a luz ao fundo mas da Estação nada.
Com sorte, a noite iria apanhar-me bem longe de casa. Se não tivesse ninguém à minha espera tinha de dormir na estação. Não era a primeira vez. Já me acontecera na Estação de Celorico da Beira e em condições bem piores, no inverno com temperaturas negativas. 
Só me apetecia deixar a mala para trás. Já não aguentava o peso.
Vilarinho da Castanheira fica numa encosta de um dos muitos planaltos do Alto Douro, a perto de 900 metros de altitude, cercado por vinhas, hortas, cearas e pinheirais.
A subida a partir daquela estação devia passar por Coleja e Pinhal do Douro e teria de ser a pique, atendendo ao facto do percurso do Pinhal para Vilarinho não ter subidas acentuadas.
Lá apareceu o apeadeiro e do outro lado do Rio o vulto de um homem a cavalo.
Ao aproximar-me o Chefe da Estação já empunhava um grande funil com que projectou a voz para o outro lado do Rio onde estava o homem da barca que rapidamente me transportou.
Assim iniciamos uma verdadeira escalada.
 O pobre do homem que me acompanhava, a galgar a pé um caminho próprio para cabras suava as estopinhas. A égua que montava, cedo começou a espumar com o roçar dos arreios, até ficar com a maior parte do corpo coberta de uma espuma branca.
Felizmente que a parte desconhecida do trajeto foi percorrida com alguma claridade. A casa só cheguei bem de noite.
É evidente que os meus pais estavam preocupados e também curiosos. Nunca tal tinha acontecido. Enquanto jantava contei todas as peripécias, túnel, ponte, com particular enfase nos tiros.
O meu pai estranhou:
- Tiros!?
- Sim. Pedradas é que não eram, respondi.
- Nem uma coisa nem outra, rapaz, em dias de muito calor, quando ao fim da tarde as fragas arrefecem, essa contração das mesmas é que produz o tal ruído.
O meu pai não se ficou por aqui.
-Tens muito que aprender, a começar pela tua terra que tens de conhecer melhor.
Esta região integra os 250 mil hectares de paisagem da vinha da Região Demarcada do Douro, primeira região demarcada do mundo, com mais de 250 anos de existência.
É bom que conheças e sua história. Começou no Rio que rasgou o seu caminho, vencendo os socalcos, fustigando as margens de granito com fúria e fecundou a terra.
O homem veio a seguir. Partiu a pedra, ergueu muros, plantou a vinha, bordou um tecido com formas e tonalidades de rara beleza impossíveis de descrever ou de pintar.
O que ouvia era para os meus ouvidos tão estranho como as tais reações da natureza.
Acabara de ver o rio correr ao longo de quilómetros, ali ao meu lado, tão calmo que não o imaginava a rasgar uma natureza agreste e selvagem.
É bem certo que as dificuldades que vencemos revertem sempre a nosso favor e nos enriquessem

Nota final: Esta história ficou-me gravada e não mais deixei de acompanhar todo o progresso da região que viu os seus vinhos premiados com ouro em todos os cantos do mundo.
Decorreu assim meio século sobre os episódios precedentes quando, em 2001, a UNESCO classifica o Alto Douro Vinhateiro como Património da Humanidade pela sua “paisagem cultural evolutiva viva”.
Não resisto a citar Miguel Torga, transmontano, apaixonado pela região e consciente do nosso pequeno território:
«Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o pais de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo…»
E foi assim, com os nossos vinhos medalhados, com uma paisagem única e com o nosso povo acolhedor que assombramos o mundo.









sexta-feira, 19 de junho de 2020

NINGUÉM ESCAPA ÀS MEMÓRIAS DA TERRA QUE O VIU NASCER


É mais uma viagem de regresso às origens para recordar e homenagear (embora tardiamente) o primo que emigrou para o Brasil, Manuel Viegas.

 Antes de mais, lamento não lhe ter manifestado, em vida, a gratidão devida pelo manancial de recordações que nos deixou.

Este familiar, filho da prima Purificação Barbosa, radicado no Brasil, escolheu a sua terra para a formação do filho, Luís Viegas, que veio fazer a instrução primária em Vilarinho e prosseguir estudos no Porto.

Para acompanhar o filho, teve estadias prolongadas em Portugal, por volta dos anos quarenta e cinquenta do século passado. 

As fotos que hoje publico datam desse tempo e são da sua autoria. Muitas outras de família, já publicadas, também lhe pertencem.

Para além das memórias, guardamos deste ramo familiar as melhores recordações e uma grande saudade.

Com o Luís António, mais novo que eu uma meia dúzia de anos, mantivemos sempre algum contacto.

Este nosso primo: Administrador de Empresas, consultor, conferencista, psicanalista… revelou-se também como intelectual humanista, cultivou a espiritualidade e publicou diversos livros.

A homenagem que não cheguei a prestar ao pai é também devida ao filho, que do outro lado do Atlântico prestigia as suas origens.


Purificação Barbosa e o neto Luís António Viegas


Jorge Cordeiro, Luís Cordeiro, Teresa Cordeiro e Lurdes Cordeiro


Automovel na neve puxado por parelha de bois


Belarmino Cordeiro,  Alice Cordeiro e Américo Cordeiro


A família Cordeiro - Capela de S. Sebastião

segunda-feira, 1 de junho de 2020

HOMENAGEM AO MÉDICO, «MESTERES», ARTESÃOS E AO POVO DE VILARINHO DA CASTANHEIRA


Reposição (atualizada) de memórias, resultante de um inadvertido apagão de 5 anos de publicações neste blog »


Completa hoje 82 anos a assinatura do Contrato entre a Casa do Povo de Vilarinho da Castanheira
e o médico Belarmino Augusto Cordeiro


Belarmino Augusto Cordeiro, (Vilarinho da Castanheira, 24.10.1904, Senhora da Hora, 24.11.1995) casado com Maria de Lurdes Puga de Assis Cordeiro, (Lagares do Douro, 16.03.1914, Senhora da Hora, 17.07.2019), pai de quatro filhos, licenciado em medicina em outubro de 1936, pela Faculdade de Medicina do Porto, registado em Carrazeda de Anciães em outubro de 1937, para o exercício de clinica em Vilarinho da Castanheira.

Em 1 de junho de 1938 assinou um contrato na qualidade de médico da Casa do Povo de Vilarinho da Castanheira, sendo o mesmo outorgado pelo Presidente da Direção: Guilhermino Augusto Mesquita e pelo Presidente da Assembleia Geral: Albano Júlio Barbosa.

O referido contrato obriga o clinico ao atendimento dos sócios do Fundo de Assistência e Caixa de Previdência no consultório da Casa do Povo, bem como à visita nos seus domicílios quando impossibilitados de se deslocaram à Casa do Povo.
Obriga ainda ao atendimento, em qualquer dia e a qualquer hora, a todos os que urgentemente precisassem dos seus serviços clínicos, abrangendo os residentes da povoação de Pinhal do Douro (anexa da freguesia).

A Casa do Povo obriga-se a remunerar o médico com a quantia de 200$00 (duzentos escudos) mensais e a pagar-lhe mais (um escudo) por quilómetro quando em serviço clinico aos sócios residentes em Pinhal do Douro.

Merece destaque a iniciativa dos responsáveis da Casa do Povo, pelos serviços que prestaram aos seus conterrâneos, disponibilizando-lhes, em meados do século passado, um atendimento clínico que o atual Serviço Nacional de Saúde não estende a todo o país.

Não há conhecimento de em Vilarinho da Castanheira ter residido outro médico em serviço, pelo que é de crer ter sido o único.

Ali exerceu durante uns 30 anos, abrangendo não só o Pinhal do Douro como outras povoações, designadamente Coleja, Mourão, Seixo, Fonte Longa e Cabeça Boa.

Tinha ainda "avenças" como médico das Quintas do Lubazim e dos Ingleses, junto ao Rio Douro.

Algumas destas povoações e lugares não tinham estradas. O acesso era feito a pé ou a cavalo. Nunca teve viatura própria.

O seu êxito na realização de partos granjeou-lhe fama na região, alargando nesta especialidade a sua atividade a outras povoações e a outros Concelhos.

Uma nova geração de nascituros viu a luz do dia com a sua ajuda em toda esta grande zona.

Foi um grande entusiasta da banda de música. Mobilizou conterrâneos mais favorecidos para renovação dos instrumentos, designadamente Carlos Pinto Cordeiro, um dos grandes armazenistas da Rua Mouzinho da Silveira no Porto.

Assistia com regularidade aos ensaios na Rua da Cadeia. Embora fossem à noite, com frequência levava com ele os filhos de tenra idade.
Também a esposa, residente em Matozinhos – Porto até ao casamento, com sólida formação cultural, contribuiu para animar as Festas e a  vida da aldeia, mediante a encenação de peças infantis, com cânticos,  danças e diversas atividades ao nível da Paróquia que entusiasmavam as crianças e que os adultos apreciavam.

As Feiras tiveram grande incremento. Das aldeias vizinhas aproveitavam a consulta ao médico para movimentar todo o comércio local. Justificou mesmo a instalação de uma farmácia na Vila.

As adversidades, como a perca do estatuto de Concelho, a pobreza, o subdesenvolvimento, nada impediu que Vilarinho registasse uma animação e uma vida urbana como não há memória! (embora a sua história se perca no tempo….)

Não podem assim cair no esquecimento quantos com o seu empreendorismo, a sua arte e a resistência perante as dificuldades, contribuíram para o crescimento e a autossuficiência conquistada.
Decorrido mais de meio século não nos recordaremos de todos; que tal não nos impeça de evocar os que temos em memória.
Foram, assim, os «mesteres» artesãos:
O latoeiro, Fernando, do Largo de Stº. António;
Os sapateiros, Alfredo, Luís e António “Ferrugem” do Largo da Sª. do Rosário;
O soqueiro, António;
O moleiro do Moinho da Ribeira das Tábuas;
As forneiras, Adelaide e Lídia Batista;
O cesteiro, Sebastião,
A tecedeira, Olívia;
Os alfaiates, Abílio e Artur da Rua da Cadeia;
O carpinteiro, com nome pomposo Chamberlain, também na Rua da Cadeia;
Bem como barbeiros, Belarmino, Aníbal e João Grande.
Os empresários da moagem,  Acúrcio e José Barbosa
Os Comerciantes Américo Moras e Guilhermino Mesquita, com estabelecimentos de grande porte, onde se encontrava de tudo, dos alfinetes aos caixões.
Os agricultores que arrancavam dum solo pobre toda a riqueza possível.
Os trabalhadores anónimos, com redobrados sacrifícios, mal pagos, em jeiras de «sol-a-sol”.

Ninguém se deixou vencer com a retirada a Vilarinho do estatuto de Conselho para o entregar a Carrazeda.

Acresce, porém, que a esta adversidade se juntaram ventos mais fortes a varrerem todo o Nordeste Transmontano.

Obrigaram à emigração em massa.

O médico não resistiu e a Farmácia fechou.

A Feira de Vilarinho com mais de cem anos de crescente atividade foi extinta.

Os «mesteres» artesãos, mesmo os mais resistentes, foram desaparecendo.

A população decresceu, continuamente.

Nada ficou como dantes.

«Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz-
Ter por vida a sepultura.»
(Fernando Pessoa)

Toda uma geração que dedicou os melhores anos das suas vidas ao serviço dos seus conterrâneos, melhorou as condições de vida da sua gente e favoreceu o desenvolvimento da sua terra, faz parte da memória de Vilarinho da Castanheira, não pode ser esquecida.

Para que a história ancestral de Vilarinho da Castanheira incuta um crescente motivo de orgulho é imperativo que todos os seus naturais se revejam nas memórias a transmitir as gerações futuras, com a nobeza que marca a identidade da nossa aldeia.