sexta-feira, 26 de agosto de 2022

COMEÇOU A FUNDO A PRÉ-TEMPORADA DE SEIVA TRUPE-TEATROVIVO

Na foto Júlio Cardoso, Guilherme Filipe, Miguel Branca, Vítor M. Sousa, Paula Guedes, Sandra Salomé, Kátia Guedes, Luciana Sanhudo, Teresa Fonseca e Costa, Jorge Castro Guedes e Fernando André. Estreia a 7 de Outubro.

  começaram os ensaios da próxima criação da SeivaTrupe-TeatroVivo: 

“BAIRRO NOITE&DIA ou de como Maria José ser boa alma não podia”, um texto, cujo autor e encenador (Castro Guedes) parte da “A Boa Alma de Setzuan” de Brecht, cada vez mais se afastando dela do ponto de vista da perpectiva ideológica, remetendo-a para o comportamento humano em gera. Ora num olhar crítico e por vezes cruel, ora movido por uma compaixão intrínseca. Com um elenco ‘de luxo’, 19 personagens criam-nos um mosaico de acontecimentos, como um espelho uns dos outros e de nós todos com eles. De forma muito resumida e sem tudo revelar, a obra começa na altura em que uma costureira de um Bairro, dos ditos ‘problemáticos’, se vê com o ganho do Jackpot do Totoloto na mão e a ilusão de poder fazer o bem a todos, que logo dela se aproveitam…

Para estrear dentro de menos de dois meses, num horário inabitual (Sextas, Sábados e Domingos às 19:00 e Segundas às 21:30) na Sala Estúdio Perpétuo (Rua de Costa Cabral, 128), a nova residência permanente da SeivaTrupe-TeatroVivo, “BAIRRO NOITE&DIA” tem cenário e vídeo de Acácio de Carvalho e Figurinos de Lola Sousa. O desenho de luz é de Júlio Filipe e a banda sonora de Pedro Pires, a criação musical é da Teresa Fonseca e Costa.

Foto e texto SeivaTrupe-TeatroVivo

terça-feira, 23 de agosto de 2022

A VIDA DA CARRIÇA, CONTADA POR ELA

CARRIÇA - I

A Nova Vida da Carriça – Contada Pelos Novos Donos 

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Como foi dito, esta é a versão dos novos donos da Carriça…

Acontece que a minha curiosidade, como adolescente, e a intimidade que tinha com a Carriça me levou a interrogá-la sobre o seu passado

Confessou-me que não tinha boas recordações. Nunca experimentou a felicidade das suas companheiras. Nunca conhecera o pai. Soube pela mãe que era um «Senhor» da mais pura raça, com fama e prestígio sem igual e disputado pelas melhores cutelarias.

- «Com a minha mãe nunca houve intimidade e poucos meses privei com ela uma vez que não demoram a separar os potros das mães. Vi que emprenhou e se até aí a me olhava com mal disfarçada indiferença, com o nascimento do seu irmão foi claro o total abandono a que me votou.»

 Não me alongo mais. Nada melhor que saber o que a própria Carriça tem para nos revelar:

CARRIÇA - II 

As Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria

Olá avô fui eu que corrigi a tua história e depois a mamã ajudou-me, está muito bonita.

Beijinhos Rosinha. 

Dedico esta fábula à minha neta mais nova, Maria Rosa, com 11 anos. 

CARRISSA - II

As Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria

«O curral em que nascemos marca o nosso destino.»

Valeu-me nascer forte e determinada a fazer pela vida. Avantajada que sou a minha mãe viu-se aflita para me por cá fora. Não teve nenhuma ajuda.

A minha primeira sensação foi sentir a minha a mãe a lamber-me e também o roçar das mamas pelas minhas orelhas, mas eu não atinava com elas para mamar. Batia com o focinho nas cochas dela, procurava levantar-me, como tinha as pernas muito compridas  e a cabeça grande e pesada, tropeçava e caia. A minha mãe observava-me, mas com indiferença, estava exausta e não deve ter gostado muito do que viu… Passava com as patas por cima de mim sem me dar qualquer ajuda.

Altas horas da noite lá apareceu o cavalariço: - Olha que feioso! E não perdeu tempo, virou costas desapontado e a falar sozinho: - O patrão vai-te dizer… Um primeiro cumprimento muito estimulante.

Não demorou a surgir um sujeito, logo seguido do cavalariço de braço bem esticado segurando o candeeiro a petróleo à frete do patrão.

Também não ficou agradado, mas foi à minha mãe que deu os “parabéns”: - Hoo rapariga! Que manjerico desajeitado me foste arranjar!      

 Vasculharam tudo com o candeeiro, sem olhos que vissem não haver sequer palha seca no chão, só estrume gelado e escorregadio o que me impedia de levantar as patas dianteiras para alcançar as mamas da minha mãe. Não via forma de mamar e precisava aquecer e de caminhar.

Lá foram aparecendo outos mirones, todos a torcer o nariz. Fiz por não prestar atenção, mas não conseguia. Que culpa tinha eu de esperarem por uma estrela!? E de verem em mim um emplastro!? E não se calavam. Em lugar de me ajudarem só sentia ferroadas: - Uma lesma!  - Não se dá ao trabalho de mamar! A minha mãe parecia indiferente, mas abanava a cabeça para ambos os lados, não resmungava, mas fungava. Também não gostava do que ouvia; mas será que degenerei?

Finalmente apareceu quem fez a diferença: - «Sai ao pai! É forte e bem grande, vai-se desenrascar». Só aquilo já me deu ânimo. Desprezei os sete olhos mortíferos enterrados em mim e lá endireitei as dianteiras, num esforço gigante fiz o mesmo com as traseiras, toda a tremer, abocanho uma mama e só a largo quando fiquei consolada.

Ainda não tinha um ano quando me separaram da minha mãe. Guinchei, relinchei, escoicinhei para todos os lados, bati com a cabeça contra as grades o que me valeu os piores insultos do cavalariço. Convidou-me com um banho de chicotada que me deixaram os lombos a arder. Mais furiosa fiquei, mas tive que aguentar.

Se até nos separarem a minha mãe já me tratava com mal disfarçada indiferença, a partir desse momento foi claro o abandono a que me votou.

Ensimesmei, entristeci, fingi que não ligava, mas nunca deixei de a procurar no pasto com o olhar.

Vi que ficou grávida. Quando o meu irmão nasceu e começou a pastar com ela, dava nas vistas, um latagão garboso, farejado por doidivanas bastante mais velhas que ele.

Desconfiei que a minha mãe tinha ciúmes do meu irmão, redobrou as mesuras com ele para afastar os pretendentes.

Para mim sobravam toda a espécie de humilhações. Sofri para prazer dos outros. Só me destinavam trabalho mais trabalho, sem liberdade, sem tempo de recreio e sem a independência de que os outros gozavam.

Fechei-me em mil conjeturas, magoada, pensativa, infeliz.

Para vencer o infortúnio que me dominava deixei-me arrastar para uns namoricos. Foi sol de pouca dura e senti-me ainda pior, não tinham coração, ou tinham, mas despedaçado. Só conheciam a sua própria dor.

Reparei que os humanos não eram melhores em nada. Governavam-se com palavras, enquanto nós vivemos das ações.

Pior ainda é quando são uns mentirosos e maus. Desencadeiam guerras horrorosas, ateiam fogos criminosos, odeiam-se uns aos outros e consideram-se racionais.

Nós somos, os irracionais, não cometemos crimes, não temos entre nós assassinos e não sabemos o que é odiar.  

Logo que me vi neste novo mundo o que eu passei para me por de pé para mamar! Mas sem qualquer ajuda levantei-me e comecei a andar.

Os ditos racionais levam um ano para se porem de pé e só com muitas ajudas dáo os primeiros passos!

Afinal, em que são superiores? Onde está o mérito? Quem é mais útil?  O que mais vale, são as palavras ou as ações?

Comprazia-me, assim, encher o balão do meu «EU». Crescia em mim um desdém pelos outros o que não motivava simpatias, muito pelo contrário.

Sentia-me revoltada com tudo e com todos. Pensativa, procurava respostas e forças para varrer do meu íntimo uma crescente animosidade, uma tendência para julgar os outros, o prazer de condenar, a arrogância de querer mudar o mundo….

A realidade é que não podia ter a pretensão de mudar os outros para mudar o mundo, mas podia, muito bem, mudar as minhas reações e o meu olhar para com os outros. Como? Amá-los tal como eles são, como gostaria que me amassem a mim. Amar o mundo tal como ele é!

Se todos assim fizerem teremos um Mundo Melhor.

Resumindo, tinha de começar por varrer do meu íntimo toda a animosidade em lugar de a cultivar, bem como tudo o resto que me envenena a existência.

Eu já nem podia olhar para a minha mãe e para o meu irmão!

Tinha assim que moderar as minhas reações e a forma de enfrentar os problemas. Mais, posso tirar partido de todo o sofrimento que me fortalece o coração para o abrir aos outros, em lugar de me vitimizar.

Sentia começar a ver claro. Precisava mudar de vida, ouvir a vós imperiosa do meu interior, assumir o trabalho do peregrino e descer ao mais íntimo do meu ser, descobrir o amor. Ir ao encontro do infinito e da Fé.

Neste combate o destino levou-me de coração renovado ao ceio de uma família que me fez muito feliz, onde virei a página e esqueci tudo quanto me torturava».

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Não interrompi a Carriça para não a desviar do seu pensamento verdadeiramente inspirador. Uma lição que me deu o sentido da vida. 

Por ironia do destino foi no coração desta família que a Carriça travou o seu último combate.

O trabalhador que a recolheu no palheiro das Olgas, prendeu-a à manjedoura com a corda que levava ao pescoço. Como não era costume ficar presa, para se libertar enrodilhou a corda ao pescoço com tamanha violência que se estrangulou.

Este drama da Carriça continua vivo no coração de toda a família. 

«E isto deve lembrar-nos que existe uma divindade que talha os nossos destinos, seja qual for a maneira porque nós os delineemos» (Hamlet a Horácio). William Shakespeare.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

A Nova Vida da Carriça – Contada Pelos Donos


O meu Pai

CARRIÇA - I

A Nova Vida da Carriça – Contada Pelos Novos Donos 

Foi moeda de troca para o pagamento de uma divida.

Era um animal alegre, vigoroso, de uma beleza sadia, exibia todo o esplendor de um puro-sangue.

Teria sido uma grande estrela nas disciplinas equestres, ou mesmo na equitação clássica dada a elegância e agilidade dos seus movimentos.

Possuía uma força indomável que imprimia a um galopar fulminante sempre que montada, sem selim, pelo primogénito do médico, único capaz de tal proeza. Mais parecia voar com asas nas quatro patas tal a destreza e velocidade. Cortava a respiração só de ver a velocidade alucinante do movimento sincronizado das quatro patas. 

Uma outra prova de força, mais própria da alta escola residia na grande facilidade com que suportava todo peso do corpo, de várias centenas de quilos, nas patas traseiras, levantando divertidamente as dianteiras acima da cabeça do filho mais novo do médico, abanando-as com movimentos rápidos na vertical, curtos e desencontrados. Mais uma das suas “brincadeiras”! 

Proporcionava assim, um espetáculo mais próprio de circo, com a diferença de não divertir, mas aterrorizar eventuais espectadores, pois receavam que tal “brincadeira” acabasse em tragédia.

Embora o meio não lhe reconhecesse as competências e não aproveitasse todas das suas capacidades artísticas, facilitava o pleno exercício destas e outras exibições libertando-a de todos os arreios, principalmente freio e do selim cujo aperto no focinho e na barriga lhe dificultava a respiração.

 Era um animal, meigo, vivia feliz e toda a família partilhava dessa mesma felicidade. Revelava que a mudança de dono lhe fora vantajosa pela dedicação, brio e alegria com que assumia todas as tarefas: O serviço exclusivo do médico e a distração dos filhos. Conhecedora dos hábitos de todos sentia fazer parte da família.

Tinha o curral por debaixo da sala de refeições dos donos e, ao amanhecer, esperava pelos primeiros movimentos da casa para relinchar. Era a sua forma de dar os bons-dias.

Dispunha de todo o tempo livre para pastar na mais bonita e produtiva das propriedades do dono, as Olgas.

Atravessada por um ribeiro com água todo o ano, mantinha-se sempre verde. Ao longo da margem interior estendia-se um lameiro que produzia feno para os animais, uma vinha e um poço para rega de uma horta. Na encosta, a norte, ficavam os palheiros. Um maior, destinado à palha e ao feno, outro contíguo, mais pequeno, destinado às alfaias agrícolas, lenha e abrigo dos animais. Este último da mais triste memória, palco de uma tragédia impossível de varrer da memória de toda a família. Um pinheiral delimitava, a norte, toda a propriedade.

Na outra margem, do lado do caminho, predominava o cultivo do trigo, centeio ou milho. Ao fundo uma outra horta, regada com a água abundante do ribeiro. Aqui era possível observar o deslizar elegante de lontras e mesmo de furões.

O que mais preocupava o dono era o prejuízo que dava o amanho destas terras. Chegou a oferecer todo o produto, trigo centeio, milho a quem o fosse colher. Ninguém aceitava. Para o produto não apodrecer na terra tinha de pagar a recolha, sabendo que a venda não chegava sequer para a despesa da colheita.

Era nesta propriedade que a Carriça pastava todo o ano, corria, e brincava com os filhos do dono.

Muito jovem, atravessava toda a aldeia em trote solitário para beber água no tanque dos animais, na fonte do cano, que fica no outro extremo da aldeia. No mesmo trote regressava à cavalariça.

Brava com estranhos, não consentia a simples colocação do selim, menos ainda ser montada por outrem além dos donos.

Um militar de cavalaria, ao saber de tal capricho fez questão de evidenciar a sua especialidade, mas por mais que tentasse o animal rodopiava furioso impossibilitando a montada. Só com a ajuda do dono é que conseguiu trepar para cima do animal. Foi sol de pouca dura. Tomou o freio nos dentes e quando alcançou um galopar desabrido, projetou repentinamente as patas dianteiras para a frente em forma de travão, estancou instantaneamente e projetou o intruso pela cabeça.

Todos os filhos do médico se iniciaram a cavalgar com tenra idade e sem ajudas. O instinto da carriça assim o permitia, facilitava esta tarefa a todos, em particular ao mais novo que não tinha mais que 4/5 anos. Encostava-se bem a um muro com escadas até uma altura de onde era fácil passar uma perna para o lado oposto do selim, segurar no mesmo as mãos, bastando retirar o outro pé do degrau para dar início a um logo passeio pela aldeia. Uma operação simples, mas que não consentia a ninguém, além do patrão. O lento, cuidadoso e seguro caminhar revelava saber bem quem a montava.

Sempre que era preciso ferrar e desferrar era o médico que a conduzia ao “tronco”, no “eiró”, para o ferrador poder fazer o seu trabalho. Ninguém conseguia segurá-la, não obedecia a mais ninguém.

O famoso realizador Akira Kurozawa, no seu filme: “KAGEMUSHA” (A sombra do Guerreiro) retrata de forma magistral a sensibilidade destes seres vivos. (a)

 

Como foi dito, esta é a versão dos novos donos da Carriça…

Acontece que a minha curiosidade, como adolescente, e a intimidade que tinha com a Carriça me levou a interrogá-la sobre o seu passado

Confessou-me que não tinha boas recordações. Nunca experimentou a felicidade das suas companheiras. Nunca conhecera o pai. Soube pela mãe que era um «Senhor» da mais pura raça, com fama e prestígio sem igual e disputado pelas melhores cutelarias.

Com a mãe nunca houve intimidade e poucos meses privou com ela uma vez que não demoram a separar os potros das mães. Viu que emprenhou e se até aí a olhou sempre com mal disfarçada indiferença, com o nascimento do seu irmão foi claro o total abandono a que a votou.

 Não me alongo mais. Nada melhor que saber o que a própria Carriça tem para nos revelar:

CARRIÇA - II 

As Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria

(A publicar brevemente)

(a) - (A sombra do Guerreiro) que significa “duplo”, o homem que substituiu o falecido “senhor da guerra” e a quem coube a missão de convencer amigos e inimigos de que o “senhor da guerra” continuava vivo com o objetivo de evitar o desencadear de guerras pelos inimigos. A assimilação pelo “duplo” do próprio “senhor da guerra” é feita de tal maneira que a todos convence. Ilude a perspicácia dos familiares e dos generais do conselho de guerra. Só não consegue iludir o cavalo do “senhor da guerra”, “nuvem negra”, que não consentia ser montado por outrem, além do dono. Ao montá-lo o animal não descansou enquanto não se desenvencilhou do intruso e atirou com ele ao chão. Foi o bastante para quem assistiu clamar tratar-se de um intruso sendo desmascarado e despedido de imediato.


 O meu irmão Jorge


Luis


Jorge Luis Teresa Lurdes