A SENTENÇA DE MORTE
Estranhamente, pensava, sentia e ouvia melhor
que nunca.
Uma das
mãos esquecida durante dias sobre uma coxa ficou como cortiça por ação da
transpiração. A outra mão, que a Mãe segurava junto ao seu rosto, ficou
igualmente como cortiça das lágrimas que sobre ela derramava noite e dia.
Acrescia
o sofrimento indescritível das chagas nas costas, nádegas e nos calcanhares que
permaneciam dias a fio na mesma posição.
Certa
manhã ouviu de uma das enfermeiras: - «Olha como tem os calcanhares em ferida,
vou pôr-lhe aqui uma almofada». Ao colocar-lhe a almofada sob as pernas de
forma a elevar-lhe os calcanhares acima do colchão ela não sonhou que os havia
retirado de cima de um braseiro.
As
nádegas e as costas que estavam em idênticas condições, assim continuaram.
Aguardava,
diariamente, a hora da visita do irmão.
Recordava os primeiros dias de internamento em que, para o
animar, trazia-lhe, uma após outra, as suas melhores gravatas.
Certo
dia, deixando fugir a boca para a verdade, comentou:
-
Afinal, estás cada vez pior! Não queres ver-te ao espelho?
Enquanto procurava no quarto um espelho para
que o irmão pudesse confirmar o estado cadavérico em que se encontrava a Mãe
interrompe-o:- Estas doido! Pára já com isso.
Era
precisamente a chegada do irmão que mais esperava. As irmãs, mais novas, estavam proibidas de o visitar em face do elevado grau de contágio. .
As
circunstâncias em que se encontrava deixavam quem o visitava sem palavras.
Quando
em Vilarinho, estendido numa cadeira de repouso na varanda, lhe perguntavam: -
Está melhorzinho?
- Sim,
melhorzinho, muito obrigado.
Não
acreditavam… e retorquiam:
- Antes
estivesse, antes estivesse, menino!!!
Tudo
apontava para o irmão ver todas as suas gravatas de volta… e a breve trecho….
Ao
olhar para traz assaltavam-no a crueldade das memórias e a selvajaria das
brincadeiras.
Desde
tenra idade que não se atemorizava com rafeiro que lhe ladrasse ás pernas, nem
se detinha a pensar quais as verdadeiras intenções do bicho para correr com ele
à pedrada.
Um
apurado "sentido do humano" acolhia as rivalidades com estimação.
O próprio
médico foi objeto de uma espera, sempre feitas em sítios escondidos. Embora
bastante esmurrado, regressou a casa.
Um caso
amplamente falado na aldeia, não teve o mesmo desfecho.
O
agressor saiu de sua casa empunhando uma caçadeira, fez a espera num ermo, dois
balázios certeiros, caçadeira ao ombro e regresso a casa.
Como
não havia testemunhas, nada aconteceu, para além dos sinos a dobrar e do
enterro no dia seguinte.
A
civilização demorou a chegar ao longínquo Nordeste Transmontano.
O pai,
enervado com a presença do gato no consultório resmungou para consigo:
-
Pagava a quem matasse este gato.
O Zito não
teria mais que dois, três anos. Ouviu... Registou bem a proposta… Bichaninho… Bichaninho…Cumpriu…
e para seu espanto o resultado foi desastroso!
Não havia sensibilidade para a morte dos animais.
Não havia sensibilidade para a morte dos animais.
Quanto a
brincadeiras, bastava atirar um punhado de pedritas ao ar junto dos perus. Logo
que uma delas, na queda, atingia a cabeça de um deles, perdia de imediato todo
o equilíbrio e acabava, nesse mesmo dia, na panela.
Passando
das pedritas para as pedras de certo peso, jogar á pedrada era a brincadeira
após as aulas e o jogo só acabava com uma cabeça rachada. Tinham o privilégio
de tratamentos gratuitos.
É certo
que o meio não ajudava.
As
criancinhas não eram imunes à moldura dos comportamentos exteriores ao meio
familiar.
Tão
pouco viviam numa redoma, protegidas de qualquer contaminação.
Pelo
contrário, mantinham relações com todos, gozavam de uma liberdade total e real.
A
chegada das realidades virtuais, das "Redes Sociais",
vieram limitar as relações pessoais e aprisionaram
jovens e adultos a écrans digitais.
Ressalta, em qualquer dos casos, ausência de Deus.
Ressalta, em qualquer dos casos, ausência de Deus.
O caso
da "Santa de Vilar Chão” é exemplar.
Muito
pequeno foi com os Pais ver a "Santa" .
Autênticas
romarias de todos os cantos do país e não só, afluíam a Vilar Chão com o mesmo
fim.
Achou-a
muito branca e muito magra e ouviu o Pai dizer a um colega:
-
Aquela cruz que tem nas costas da mão não tem nada de natural, é uma ferida
provocada, tem os tecidos macerados. Estão a sacrificar a pobre rapariga.
Não
decorreu muito tempo para se espalhar a notícia de que o padre da terra, o
médico e familiares procuraram “fabricar” uma “santa” para chamar gente ao
lugar.
Este
caso não ajudou os que defendiam as aparições em Fátima.
Neste caso
foram os adultos a por em causa os relatos dos Pastorinhos, ao ponto de também
os sacrificarem, pela forma como os procuraram desacreditar.
A
verdade é que as crianças resistiram e defenderam os relatos das suas visões
até à morte.
Uma
coisa é não compreendermos, não acreditarmos, não termos fé.
Outra,
muito diferente, é o respeito que devemos aos que acreditam e quem têm fé.
Despertava
agora para a sua tomada de consciência.
Nunca
descera ao seu interior, nunca procurou saber se tinha controlo sobre a sua
vida, sobre o seu pensamento, sobre os seus sentimentos, sobre o valor que todo
este conhecimento interior teria na sua conduta, na sua consciência.
Era
chegada a hora de empreender essa viagem de peregrino ao seu mundo interior, de
virar a página das preocupações mesquinhas de todos os dias, dos meros pesares
de criancinha que sofre porque nada controlam.
Na medida
em que a medicação não atuava e a tuberculose galopante o minava o Pai e o
médico assistente convocaram o melhor especialista pulmonar do Porto para uma
melhor avaliação do quadro clínico.
Sentia
ter chegado a hora da verdade.
Qualquer
que fosse o resultado, tinha de controlar as emoções e manter-se sereno.
Depois
de um exame demorado das radiografias, análises clínicas e de todos os
elementos disponíveis, o especialista concluiu:
-Nada
podemos fazer pelo rapaz. O Dr. leve o seu filho para casa. Em casa terá uma
morte mais descansada.
O pai,
alarmado, não hesitou na resposta:
-Morte
descansada tem ele aqui. Se o tiro da cama e o ponho numa maca mato-o.
Todos concordaram.
Concordaram
também parar com toda a medicação uma vez que estavam a sacrificá-lo
inutilmente.
Era a confirmação da sentença de morte.
Vista da Capela Nossa Senhora da Fé
Segue:
III
A HORA DA VERDADE
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