quinta-feira, 16 de julho de 2020

EM MEMÓRIA DE MINHA MÃE

Ilda Puga Oliveira Assis e Manuel Assis Pimentel e Castro - Avós Maternos

Minha mãe faleceu há precisamente um ano. 

O que hoje possa dizer fica sempre muito distante do que ela viveu, sofreu e representou para todos com quem conviveu, em particular marido, filhas, filhos, netos, amigas, os necessitados…..  esquecendo-se de si e cuidando de todos enquanto pôde.

Aos 4 anos perdeu o pai, Manuel Assis Pimentel e Castro, com 34 anos e aos 6 anos a mãe, Ilda Puga de Oliveira Assis, com 28. Restou-lhe o amparo da irmã, com mais 3 anos.
Dois corações despedaçados, feridos de morte, pela perda inevitável dos seres mais amados. 
Ambas ficaram ao cuidado do avô paterno, Manoel António Assis de Morais Sarmento. 
Pouco tardou a libertar-se da mais nova entregando-a à guarda do padrinho, Manuel Lopes de Sousa Júnior, residente em Matosinhos.

Com os corações trementes, receberam um novo golpe, a separação, Não se podiam ver uma sem a outra.

Inevitável, foi a morte dos pais. A separação era obra de uma família que se recusava a entendê-las, o que elas não entendiam. Não aceitaram morrer assim uma para a outra.

A mais nova chorava continuamente, sabendo a irmã bem longe.

A mais velha sentia-se a protetora da irmã e não se resignava com o afastamento. Nem com o castigo de se ver fechada, pelo avô, dentro de um armário, sempre que reclamava a companhia da irmã.

Perturbadas por um mundo cruel que tudo lhes queria roubar, irmanadas no mesmo sofrimento, sentiram a necessidade de uma fé e cedo se voltaram para Cristo, também Ele Incompreendido.

O padrinho, uma boa alma de Deus, recebeu também a mais velha.

Assim venceram a primeira grande batalha das suas vidas.

Ambas frequentaram o Colégio de Religiosas em Tuy outros colégios, até à maior idade, altura em que a minha tia Noémia deu entrada no Convento das Franciscanas, como noviça. A minha Mãe foi celebrar os seus 18 anos a Vilarinho. 

Requereu a sua emancipação com vista à resolução final da herança e partir à descoberta de novos caminhos e de uma liberdade nunca experimentada.

«Infeliz o pássaro que nasce em ninho ruim» - «As asas puxam-no sempre para onde aprendeu a voar».

Foi o que aconteceu à minha mãe. Nunca pensou fixar-se em definitivo em Vilarinho da Castanheira.

Ao sonho de, finalmente, ser dona do seu tempo e do seu destino, sobrepôs a ligação a uma nova família que precisava dela. Obedeceu aos sentimentos do coração. O marido tinha uma forte ligação à terra e aos pais. Quando começou a exercer encontrou os pais muito debilitados e a precisar dos seus cuidados, também como médico. Por lá ficaram.

A irmã, embora possuída de uma FÉ inabalável, deve ter reconhecido não ter vocação para se consagrar a uma vida de religiosa.

Cedo abraçou a luz que Deus coloca em nossos corações, iluminou assim os seus dias com o colorido «…dos lírios do campo: …que não fiam nem tecem…».

Dotada de um coração do tamanho da terra, decidiu partilhar com as aves do céu «…que não semeiam nem colhem…»  o ar puro das altitudes e voou para África.

Deus não deixou de semear, na sua longa aventura de 101 anos, mil desafios, obstáculos e tormentas.

Tropeçou nos espinhos, soube despertar o perfume das rosas, prosseguiu desígnios divinos, trilhou sempre os caminhos dos que alcançam o Reino de Deus.

A irmã cuidou de assuntos mais terrenos.

No 1º. Encontro com o advogado encarregado do processo da herança, este questionou-a:

- A menina já deve ter ouvido falar de mim……

- Más referências tenho ouvido algumas, mas as minhas impressões são bem piores. O Sr. Dr. sabe bem que atacar viúvas é crime, mas órfãs é bem pior.

A atuação do seu advogado, consertada ao longo dos anos, com os interesses dos outros herdeiros, não podia ter sido mais nociva para as órfãs.

Mantive sempre com a minha mãe uma relação harmoniosa, diria mesmo, amorosa. Via nela o modelo de Mãe.

Nasci doente, enfezado e friorento. Talvez por me calhar o mês de dezembro, não resistia ao frio da neve do gelo, atraia as doenças e procurava os perigos.

Lambareiro, ao deparar com um saco de papel que aparentava depositar restos de açúcar lá vou meter a língua, não tardou a crescer palmo e meio, com as goelas a arder e os lábios empertigados mal podia  gritar… . Num misto de aflição e irritação o meu pai procurava desesperadamente um antidoto para a soda caustica, minha mãe tudo fazia para me acalmar, sofria comigo as minhas dores.

A fúria de ser o primeiro abocar uma castanha bem assada - que me sorria no assador - premiou-me com a visão das estrelas em pleno dia. Lábios rebentados, língua a sangrar, eu a berrar, manas e mano entre o susto e o riso. Mais uma vez a minha mãe a consolar-me, a tratar-me e a sofrer comigo.

Aos pesadelos delirantes impossíveis de imaginar, como ter um reco debaixo da cama que me queria devorar, lá acordava aos gritos como se o quarto estivesse a arder…. Só a minha mãe me socorria e com toda a ternura procurava sossegar-me e ali ficava até eu adormecer.

Sempre que uma mão misteriosa me esticava o tendão do dedo grande do pé direito, vergando-o ao ponto de querer encostar a unha ao peito do pé, lá abria de novo as goelas com dores lancinantes às quais só a minha mãe dava importância. Segurava-me o dedo com firmeza, obrigava-o com todos os cuidados a retomar a sua posição normal, permanecendo ali até me ver dormir.

Por volta de uma dúzia de anos mais tarde, pelos meus 17 anos, quando um conjunto de especialistas, reunidos no meu quarto no Sanatório Rodrigues Semide no Porto, confessaram nada mais poderem fazer por mim e aconselharam o meu pai a levar-me para casa - onde teria uma morte mais descansada - ali mesmo fiquei com a minha mãe à cabeceira da cama, dia e noite. 
Sem palavras, chorava e rezava e sofria, num silêncio sepulcral.

Bastava a sua presença para atenuar toda a minha dor. Sofria comigo e eu pensava: «Isto é que é uma Mãe!»

Mas não devo ter aprendido bem a lição.

25 de anos mais tarde, a minha filha mais nova teria uns 7 anos, detém-se inesperadamente à minha frente, abre ambos os braços, lembrando Cristo Crucificado, olha-me nos olhos com ar sancionatório e dispara: - «Isto é que é um pai!?»

Veio-me à memória a minha mãe - Uma mesma frase com sentido contrário! - Associei: “isto” a coisa a "objeto". . Suou-me muito mal e ali fiquei eu crucificado.

Bem procurei saber os motivos de tal explosão, só obtive o desprezo do silêncio».

Sem que os especialistas encontrassem qualquer explicação, recuperei! Será que Deus ouviu as preces da minha mãe!?

A minha tia Noémia foi para mim uma segunda mãe.

Recebi de ambas um coração ardente, com alma, fortalecido no sofrimento e no instinto poderoso do amor que as unia, desligado dos contos de fadas.

Apontaram-me os caminhos da fé.

Na minha juventude, novos contatos colocaram em risco tais caminhos.

Terem-me incutido o sentido religioso, que mobiliza as energias do espírito e do coração, muito me ajudaram a libertar do mal e a reparar nas boas razões, do coração e da alma, que nos levam ao encontro de Deus.

É meu dever destacar o enorme espírito de solidariedade e de fraternidade em torno da minha irmã Teresa. Desde a empregada Emília, à enfermeira Maria Alice - chamada a prestar cuidados de saúde a meu pai numa fase terminal - passou a ser a melhor companhia e o melhor apoio, em particular dos que nos foram deixando.

Todos congregados numa só família envolveram, no doce aconchego e conforto das suas casas e com verdadeiro amor humano: O meu pai, a minha tia Noémia, o meu cunhado Mário e por último a minha mãe. 

Assim partiram para o Reino de Deus.
Testemunho de uma bisneta

Minha Mãe com 98 anos - Praia da Rocha
Eu, minha mãe, Mário e minha tia Noémia

Festa de Aniversário dos 90 Anos Mãe






100 ANOS MÃE



100 ANOS MÃE
Enfermeira MARIA ALICE, minha MÃE e EU
Vista  Marina da Rocha - MÃE 98 anos

Enfermeira MARIA ALICE, minha MÃE e EU
101 ANOS MÃE
102 ANOS MÃE
102 ANOS MÃE

quarta-feira, 1 de julho de 2020

O QUE É A VERDADE?

Ainda sobre «UMA LUZ AO FUNDO DO TÚNEL» um familiar questionou-me: - Atravessaste mesmo o túnel e a ponte???

O facto de não ser passivo em coisa alguma, não justifica ser excessivo, o dá lugar a interrogações. Eu sei! Ninguém é perfeito.

O que poucos sabem é o meu esforço para alcançar três objetivos:
1ª. Respeitar a verdade para comigo mesmo. Em consciência, nada poderia esperar da vida sem este requisito.
2ª. Ter Fé, apoiada em actos. É caminho para a paz e para a eternidade.
3ª. Amar as pessoas tal como são e o mundo tal como é.

Não é fácil!

Stefan Zweig em O Mundo de Ontem: «Não se elimina nunca completamente aquilo que cada ser humano, quando criança, recebe do meio que o cerca».

Não pretendo esconder-me com esta realidade, mas a verdade é que nasci, numa recôndita e primitiva aldeia do mais profundo Nordeste Transmontano, precisamente no ano em que deflagrou a 2ª. Guerra Mundial. Os primeiros indícios de civilização só ali chegaram alguns anos após me ter deslocado para o Porto para continuar estudos.
  
Desta forma, os velhos como eu, nasceram e cresceram numa Europa dominada por ferozes ditaduras.

As democracias falharam.

As grandes ideologias totalitárias mentiram aos seus povos. Fascismos, bolchevismos, comunismos, nacionalismos nazis, desenvolviam uma propaganda com abstrações mortífera, não poupavam a vida a quem, com a verdade, pretendesse desmontar a mentira vigente.

De todas as ditaduras a mais suave foi ainda a de Salazar, sempre a coberto da mentira. Mesmo assim o «25 de Abril de 1974» veio libertar um sem número de presos políticos, não se sabendo quantos foram assassinados por “crimes de opinião”.

No dia 4 de Julho de 2019 reportei, neste blogue, ao caso «DREYFUS», um inocente condenado a prisão perpétua. 
Este caso ilustra bem como o poder político e militar, evocando o “interesse nacional”, se sobrepõe à justiça individual. Zola sacrificou os últimos anos da sua vida para repor a verdade. Faleceu em 1902. O processo arrastou-se de 1898 até 1906.
  
Bernardo Bertolucci, em «NOVECENTO (1900)», ao longo de 317 minutos, tempo de duração do filme, documenta bem os horrores do fascismo em Itália.

Muitos foram os que pagaram com a vida a conquista da liberdade para que as novas gerações, sem temor,  denunciem a mentira que persiste.

Persiste nas mais variadas formas, quer na sociedade civil, quer no poder politico. Cada um a torneia à sua maneira. O poder político usa os números e as percentagens para a disfarçar.

Um exemplo: Os governantes aconselham um distanciamento impossível de manter nas horas de ponta, com os transportes públicos a abarrotar por quantos precisam de chegar ao trabalho. Desta forma os contágios não param de crescer com consequências dramáticas para as famílias e população em geral.
Surge o político “experiente” a justificar que a ocupação dos transportes públicos não vai além dos 30%. 
Ao fornecer a percentagem do dia de circulação, ilude o centro problema - as horas de ponta -. Esta percentagem não passa de uma mentira e a gravidade dos contágios tem responsáveis! 

Tolstoi despertou consciências: «… …… uma verdade que adotamos de olhos fechados, uma verdade por submissão, uma verdade por condescendência, uma verdade por servilismo – essa verdade não passa de uma mentira». 
E convoca-nos: «Homem, levanta-te! Abre os olhos, olha! Não tenhas medo! O essencial não está em amealharmos uma rica ciência, mas, pequena ou rica, nossa e nutrida do nosso próprio sangue, e filha do nosso livre esforço. A liberdade de espírito é o supremo tesouro».   L´Esprit libre, 1 de Maio de 1917. 

À pergunta em questão, respondeu Gandi: «A verdade é Deus».

A verdade tem uma dimensão divina.

Cristo, crucificado com a mentira dos homens - «Um milagre que dura há mais de vinte séculos» - anuncia-nos:

“Eu sou o caminho, e a verdade, e a vida….”










terça-feira, 23 de junho de 2020

A LUZ AO FUNDO DO TUNEL


Acordei sobressaltado com o barulho do rodado do comboio sobre os carris. Olhei em volta procurando saber onde estava e também, se via alguém na carruagem que me ajudasse. Nem uma coisa nem outra. Levantei-me a custo, dorido dos bancos de madeira e lá descobri um passageiro, a quem perguntei:
- Já passou a Estação do Freixo?
- Ficou duas estações para trás!
Peguei na mala e precipitei-me para fora do comboio, com este já em andamento, Vargelas. Tantas vezes ali passei e não conhecia. Encarei com o Chefe da Estação e disparei:
- Imagine, adormeci e deixei ficar a Estação do Freixo de Numão para trás.
- O que deixou foi o comboio que vai para o Freixo… e nem é a próxima, mas a outra a seguir!
Fiquei sem fala. Como é possível ser tão estúpido. Lembrei-me que o meu pai mandara um homem esperar-me, perguntei se podia alugar um carro que me levasse ao Freixo.
- Aqui não há qualquer outro transporte além do comboio. Não temos estrada e o próximo comboio só passa amanhã de manhã.
-  Posso ir a pé?
- Lá poder pode, mas pelo caminho chega lá amanhã. Vale mais esperar pelo comboio.
- E pela linha?
- Pela linha nem pensar, é expressamente proibido.
- Mas não tenho alternativa… uma vez que o próximo comboio só passa amanhã... bem podia facilitar-me a vida! É que não posso avisar a pessoa que me espera no Freixo nem os meus pais.
- Eu não posso autorizar…é proibido. Além do mais não é nada fácil atravessar o túnel, rapidamente perde por completo a visibilidade. A ponte logo a seguir ao túnel é só para passagem do comboio, não a vai conseguir atravessar.
-Para o túnel eu tenho fósforos…
-Não lhe servem de nada, este túnel tem centenas de metros, após as primeiras curvas fica escuro como breu, com poças de água, ninhos de ratazanas, cobras, é mesmo muito perigoso. No seu lugar esperava pelo comboio de amanhã. Arranjo-lhe aqui onde dormir.
- Agradeço-lhe por tudo, respeito a sua proibição, mas permita-me tentar. Como não obtive resposta atrevi-me a dizer que precisava de avisar a pessoa que me esperava no Freixo de Numão, para vir ao meu encontro na Estação do Vesúvio.
- Vá lá e boa sorte. Eu aviso o meu colega do Freixo. Se não conseguir, não insista, é mais seguro desistir e dormir aqui.
O chefe da Estação tinha mais que razão. Depressa fiquei sem fósforos com noite escura. Por mais cuidado não evitava tropeçar, cai mesmo e esfolei as canelas. Mal conseguia avançar. As poças e a  possível existência de víboras atormentavam-me. Nada do fim do túnel. A mala era um grande estorvo e cada vez mais pesada. Finalmente surgiu metade de um minúsculo círculo branco, rapidamente aumentou e veio dar-me um novo ânimo, embora de pouca duração.
A satisfação de vencer o túnel esvaneceu-se ao primeiro olhar para a ponte que se seguia. Uma entrada em granito e tudo o resto em ferro ferrugento ligava as duas margens. A transição do granito para o ferro era assustadora.
Corrimão e pavimento meios podres, só os trilhos tinham continuidade. E não era possível evitar olhar para o precipício. Aqui a mala era o maior estorvo. Não valia o trabalho que dava, menos ainda o risco de me ver arrastado com ela. Ao pisar a primeira chapa, cedeu com o peso e levantou na outra extremidade. O corrimão de apoio abanava, era traiçoeiro, sempre a ver-me estatelado no lajedo ou no curso de água, o abismo era um íman que me forçava a vista.
Ao vencer a última chapa e colocar, finalmente, um pé em terra firme, cheguei ao paraíso. Deu para apreciar a paisagem, lindíssima, de tirar a respiração, Ninguém à vista. Eu, só, no coração do Douro Vinhateiro que se estendia até à fronteira – Barca de Alva.
Estávamos em meados do século passado. Senti-me duplamente reconhecido ao Chefe da Estação pela vista única que me rodeava, sempre com o Rio a correr ao meu lado.
É claro que estava apreensivo, não sabia se o recado para me virem esperar ao Vesúvio terá chegado ao destino. Daquela estação ignorava por completo o caminho para casa. Havia ainda muitas interrogações.
Mais um susto! Fortíssimos estalidos denunciavam a pancada no lajedo das fragas de pedradas projetadas com grande violência. Ao impacto seguia-se o eco e o silêncio.
Estranho! A serem pedras haveria o saltar das mesmas produzindo outros impactos, mas não!
Mais pareciam tiros. Eram mesmo tiros, com toda a certeza. Os caçadores atiram sobre tudo! Chegam a matar os próprios cães!!!  Assustado procurava os responsáveis. Não vislumbrava viva alma.
O sol caía, mais dois tuneis que deixavam ver claramente a luz ao fundo mas da Estação nada.
Com sorte, a noite iria apanhar-me bem longe de casa. Se não tivesse ninguém à minha espera tinha de dormir na estação. Não era a primeira vez. Já me acontecera na Estação de Celorico da Beira e em condições bem piores, no inverno com temperaturas negativas. 
Só me apetecia deixar a mala para trás. Já não aguentava o peso.
Vilarinho da Castanheira fica numa encosta de um dos muitos planaltos do Alto Douro, a perto de 900 metros de altitude, cercado por vinhas, hortas, cearas e pinheirais.
A subida a partir daquela estação devia passar por Coleja e Pinhal do Douro e teria de ser a pique, atendendo ao facto do percurso do Pinhal para Vilarinho não ter subidas acentuadas.
Lá apareceu o apeadeiro e do outro lado do Rio o vulto de um homem a cavalo.
Ao aproximar-me o Chefe da Estação já empunhava um grande funil com que projectou a voz para o outro lado do Rio onde estava o homem da barca que rapidamente me transportou.
Assim iniciamos uma verdadeira escalada.
 O pobre do homem que me acompanhava, a galgar a pé um caminho próprio para cabras suava as estopinhas. A égua que montava, cedo começou a espumar com o roçar dos arreios, até ficar com a maior parte do corpo coberta de uma espuma branca.
Felizmente que a parte desconhecida do trajeto foi percorrida com alguma claridade. A casa só cheguei bem de noite.
É evidente que os meus pais estavam preocupados e também curiosos. Nunca tal tinha acontecido. Enquanto jantava contei todas as peripécias, túnel, ponte, com particular enfase nos tiros.
O meu pai estranhou:
- Tiros!?
- Sim. Pedradas é que não eram, respondi.
- Nem uma coisa nem outra, rapaz, em dias de muito calor, quando ao fim da tarde as fragas arrefecem, essa contração das mesmas é que produz o tal ruído.
O meu pai não se ficou por aqui.
-Tens muito que aprender, a começar pela tua terra que tens de conhecer melhor.
Esta região integra os 250 mil hectares de paisagem da vinha da Região Demarcada do Douro, primeira região demarcada do mundo, com mais de 250 anos de existência.
É bom que conheças e sua história. Começou no Rio que rasgou o seu caminho, vencendo os socalcos, fustigando as margens de granito com fúria e fecundou a terra.
O homem veio a seguir. Partiu a pedra, ergueu muros, plantou a vinha, bordou um tecido com formas e tonalidades de rara beleza impossíveis de descrever ou de pintar.
O que ouvia era para os meus ouvidos tão estranho como as tais reações da natureza.
Acabara de ver o rio correr ao longo de quilómetros, ali ao meu lado, tão calmo que não o imaginava a rasgar uma natureza agreste e selvagem.
É bem certo que as dificuldades que vencemos revertem sempre a nosso favor e nos enriquessem

Nota final: Esta história ficou-me gravada e não mais deixei de acompanhar todo o progresso da região que viu os seus vinhos premiados com ouro em todos os cantos do mundo.
Decorreu assim meio século sobre os episódios precedentes quando, em 2001, a UNESCO classifica o Alto Douro Vinhateiro como Património da Humanidade pela sua “paisagem cultural evolutiva viva”.
Não resisto a citar Miguel Torga, transmontano, apaixonado pela região e consciente do nosso pequeno território:
«Patético, o estreito território de angústia, cingido à sua artéria de irrigação, atravessa o pais de lado a lado. E é, no mapa da pequenez que nos coube, a única evidência incomensurável com que podemos assombrar o mundo…»
E foi assim, com os nossos vinhos medalhados, com uma paisagem única e com o nosso povo acolhedor que assombramos o mundo.









sexta-feira, 19 de junho de 2020

NINGUÉM ESCAPA ÀS MEMÓRIAS DA TERRA QUE O VIU NASCER


É mais uma viagem de regresso às origens para recordar e homenagear (embora tardiamente) o primo que emigrou para o Brasil, Manuel Viegas.

 Antes de mais, lamento não lhe ter manifestado, em vida, a gratidão devida pelo manancial de recordações que nos deixou.

Este familiar, filho da prima Purificação Barbosa, radicado no Brasil, escolheu a sua terra para a formação do filho, Luís Viegas, que veio fazer a instrução primária em Vilarinho e prosseguir estudos no Porto.

Para acompanhar o filho, teve estadias prolongadas em Portugal, por volta dos anos quarenta e cinquenta do século passado. 

As fotos que hoje publico datam desse tempo e são da sua autoria. Muitas outras de família, já publicadas, também lhe pertencem.

Para além das memórias, guardamos deste ramo familiar as melhores recordações e uma grande saudade.

Com o Luís António, mais novo que eu uma meia dúzia de anos, mantivemos sempre algum contacto.

Este nosso primo: Administrador de Empresas, consultor, conferencista, psicanalista… revelou-se também como intelectual humanista, cultivou a espiritualidade e publicou diversos livros.

A homenagem que não cheguei a prestar ao pai é também devida ao filho, que do outro lado do Atlântico prestigia as suas origens.


Purificação Barbosa e o neto Luís António Viegas


Jorge Cordeiro, Luís Cordeiro, Teresa Cordeiro e Lurdes Cordeiro


Automovel na neve puxado por parelha de bois


Belarmino Cordeiro,  Alice Cordeiro e Américo Cordeiro


A família Cordeiro - Capela de S. Sebastião