terça-feira, 23 de agosto de 2022

A VIDA DA CARRIÇA, CONTADA POR ELA

CARRIÇA - I

A Nova Vida da Carriça – Contada Pelos Novos Donos 

*************************************************************

Como foi dito, esta é a versão dos novos donos da Carriça…

Acontece que a minha curiosidade, como adolescente, e a intimidade que tinha com a Carriça me levou a interrogá-la sobre o seu passado

Confessou-me que não tinha boas recordações. Nunca experimentou a felicidade das suas companheiras. Nunca conhecera o pai. Soube pela mãe que era um «Senhor» da mais pura raça, com fama e prestígio sem igual e disputado pelas melhores cutelarias.

- «Com a minha mãe nunca houve intimidade e poucos meses privei com ela uma vez que não demoram a separar os potros das mães. Vi que emprenhou e se até aí a me olhava com mal disfarçada indiferença, com o nascimento do seu irmão foi claro o total abandono a que me votou.»

 Não me alongo mais. Nada melhor que saber o que a própria Carriça tem para nos revelar:

CARRIÇA - II 

As Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria

Olá avô fui eu que corrigi a tua história e depois a mamã ajudou-me, está muito bonita.

Beijinhos Rosinha. 

Dedico esta fábula à minha neta mais nova, Maria Rosa, com 11 anos.

CARRISSA - II

As Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria

«O curral em que nascemos marca o nosso destino.»

Valeu-me nascer forte e determinada a fazer pela vida. Avantajada que sou a minha mãe viu-se aflita para me por cá fora. Não teve nenhuma ajuda.

A minha primeira sensação foi sentir a minha a mãe a lamber-me e também o roçar das mamas pelas minhas orelhas, mas eu não atinava com elas para mamar. Batia com o focinho nas cochas dela, procurava levantar-me, como tinha as pernas muito compridas  e a cabeça grande e pesada, tropeçava e caia. A minha mãe observava-me, mas com indiferença, estava exausta e não deve ter gostado muito do que viu… Passava com as patas por cima de mim sem me dar qualquer ajuda.

Altas horas da noite lá apareceu o cavalariço: - Olha que feioso! E não perdeu tempo, virou costas desapontado e a falar sozinho: - O patrão vai-te dizer… Um primeiro cumprimento muito estimulante.

Não demorou a surgir um sujeito, logo seguido do cavalariço de braço bem esticado segurando o candeeiro a petróleo à frete do patrão.

Também não ficou agradado, mas foi à minha mãe que deu os “parabéns”: - Hoo rapariga! Que manjerico desajeitado me foste arranjar!      

 Vasculharam tudo com o candeeiro, sem olhos que vissem não haver sequer palha seca no chão, só estrume gelado e escorregadio o que me impedia de levantar as patas dianteiras para alcançar as mamas da minha mãe. Não via forma de mamar e precisava aquecer e de caminhar.

Lá foram aparecendo outos mirones, todos a torcer o nariz. Fiz por não prestar atenção, mas não conseguia. Que culpa tinha eu de esperarem por uma estrela!? E de verem em mim um emplastro!? E não se calavam. Em lugar de me ajudarem só sentia ferroadas: - Uma lesma!  - Não se dá ao trabalho de mamar! A minha mãe parecia indiferente, mas abanava a cabeça para ambos os lados, não resmungava, mas fungava. Também não gostava do que ouvia; mas será que degenerei?

Finalmente apareceu quem fez a diferença: - «Sai ao pai! É forte e bem grande, vai-se desenrascar». Só aquilo já me deu ânimo. Desprezei os sete olhos mortíferos enterrados em mim e lá endireitei as dianteiras, num esforço gigante fiz o mesmo com as traseiras, toda a tremer, abocanho uma mama e só a largo quando fiquei consolada.

Ainda não tinha um ano quando me separaram da minha mãe. Guinchei, relinchei, escoicinhei para todos os lados, bati com a cabeça contra as grades o que me valeu os piores insultos do cavalariço. Convidou-me com um banho de chicotada que me deixaram os lombos a arder. Mais furiosa fiquei, mas tive que aguentar.

Se até nos separarem a minha mãe já me tratava com mal disfarçada indiferença, a partir desse momento foi claro o abandono a que me votou.

Ensimesmei, entristeci, fingi que não ligava, mas nunca deixei de a procurar no pasto com o olhar.

Vi que ficou grávida. Quando o meu irmão nasceu e começou a pastar com ela, dava nas vistas, um latagão garboso, farejado por doidivanas bastante mais velhas que ele.

Desconfiei que a minha mãe tinha ciúmes do meu irmão, redobrou as mesuras com ele para afastar os pretendentes.

Para mim sobravam toda a espécie de humilhações. Sofri para prazer dos outros. Só me destinavam trabalho mais trabalho, sem liberdade, sem tempo de recreio e sem a independência de que os outros gozavam.

Fechei-me em mil conjeturas, magoada, pensativa, infeliz.

Para vencer o infortúnio que me dominava deixei-me arrastar para uns namoricos. Foi sol de pouca dura e senti-me ainda pior, não tinham coração, ou tinham, mas despedaçado. Só conheciam a sua própria dor.

Reparei que os humanos não eram melhores em nada. Governavam-se com palavras, enquanto nós vivemos das ações.

Pior ainda é quando são uns mentirosos e maus. Desencadeiam guerras horrorosas, ateiam fogos criminosos, odeiam-se uns aos outros e consideram-se racionais.

Nós somos, os irracionais, não cometemos crimes, não temos entre nós assassinos, não sabemos o que é odiar nem mentir.

Logo que me vi neste novo mundo o que eu passei para me por de pé para mamar! Mas sem qualquer ajuda levantei-me e comecei a andar.

Os ditos racionais levam um ano para se porem de pé e só com muitas ajudas dei os primeiros passos!

Afinal, em que são superiores? Onde está o mérito? Quem é mais útil?  O que mais vale, são as palavras ou as ações?

Comprazia-me, assim, encher o balão do meu «EU». Crescia em mim um desdém pelos outros o que não motivava simpatias, muito pelo contrário.

Sentia-me revoltada com tudo e com todos. Pensativa, procurava respostas e forças para varrer do meu íntimo uma crescente animosidade, uma tendência para julgar os outros, o prazer de condenar, a arrogância de querer mudar o mundo….

A realidade é que não podia ter a pretensão de mudar os outros para mudar o mundo, mas podia, muito bem, mudar as minhas reações e o meu olhar para com os outros. Como? Amá-los tal como eles são, como gostaria que me amassem a mim. Amar o mundo tal como ele é!

Se todos assim fizerem teremos um Mundo Melhor.

Resumindo, tinha de começar por varrer do meu íntimo toda a animosidade em lugar de a cultivar, bem como tudo o resto que me envenena a existência.

Eu já nem podia olhar para a minha mãe e para o meu irmão!

Tinha assim que moderar as minhas reações e a forma de enfrentar os problemas. Mais, posso tirar partido de todo o sofrimento que me fortalece o coração para o abrir aos outros, em lugar de me vitimizar.

Sentia começar a ver claro. Precisava mudar de vida, ouvir a vós imperiosa do meu interior, assumir o trabalho do peregrino e descer ao mais íntimo do meu ser, descobrir o amor. Ir ao encontro do infinito e da Fé.

Neste combate o destino levou-me de coração renovado ao ceio de uma família que me fez muito feliz, onde virei a página e esqueci tudo quanto me torturava».

***************************************

Não interrompi a Carriça para não a desviar do seu pensamento verdadeiramente inspirador. Uma lição que me deu o sentido da vida. 

Por ironia do destino foi no coração desta família que a Carriça travou o seu último combate.

O trabalhador que a recolheu no palheiro das Olgas, prendeu-a à manjedoura com a corda que levava ao pescoço. Como não era costume ficar presa, para se libertar enrodilhou a corda ao pescoço com tamanha violência que se estrangulou.

Este drama da Carriça continua vivo no coração de toda a família. 

«E isto deve lembrar-nos que existe uma divindade que talha os nossos destinos, seja qual for a maneira porque nós os delineemos» (Hamlet a Horácio). William Shakespeare.