CARRIÇA - I
A Nova Vida da Carriça –
Contada Pelos Novos Donos
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Como foi dito, esta é a
versão dos novos donos da Carriça…
Acontece que a minha
curiosidade, como adolescente, e a intimidade que tinha com a Carriça me levou
a interrogá-la sobre o seu passado
Confessou-me que não
tinha boas recordações. Nunca experimentou a felicidade das suas companheiras.
Nunca conhecera o pai. Soube pela mãe que era um «Senhor» da mais pura raça,
com fama e prestígio sem igual e disputado pelas melhores cutelarias.
- «Com a minha mãe nunca
houve intimidade e poucos meses privei com ela uma vez que não demoram a
separar os potros das mães. Vi que emprenhou e se até aí a me olhava com mal
disfarçada indiferença, com o nascimento do seu irmão foi claro o total
abandono a que me votou.»
Não me alongo
mais. Nada melhor que saber o que a própria Carriça tem para nos revelar:
As Minhas Origens e o Meu
Destino – Contados Pela Própria
Olá avô fui eu que corrigi a tua história e depois a mamã ajudou-me, está muito bonita.
Beijinhos Rosinha. ☺
Dedico esta fábula à minha neta mais nova, Maria Rosa, com 11 anos.
As
Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria
«O
curral em que nascemos marca o nosso destino.»
Valeu-me nascer forte
e determinada a fazer pela vida. Avantajada que sou a minha mãe viu-se aflita
para me por cá fora. Não teve nenhuma ajuda.
A minha primeira
sensação foi sentir a minha a mãe a lamber-me e também o roçar das mamas pelas minhas
orelhas, mas eu não atinava com elas para mamar. Batia com o focinho nas cochas
dela, procurava levantar-me, como tinha as pernas muito compridas e a cabeça grande e pesada, tropeçava e caia. A
minha mãe observava-me, mas com indiferença, estava exausta e não deve ter
gostado muito do que viu… Passava com as patas por cima de mim sem me dar qualquer
ajuda.
Altas horas da noite
lá apareceu o cavalariço: - Olha que feioso! E não perdeu tempo, virou costas
desapontado e a falar sozinho: - O patrão vai-te dizer… Um primeiro cumprimento
muito estimulante.
Não demorou a surgir
um sujeito, logo seguido do cavalariço de braço bem esticado segurando o candeeiro
a petróleo à frete do patrão.
Também não ficou
agradado, mas foi à minha mãe que deu os “parabéns”: - Hoo rapariga! Que manjerico
desajeitado me foste arranjar!
Vasculharam tudo com o candeeiro, sem olhos
que vissem não haver sequer palha seca no chão, só estrume gelado e
escorregadio o que me impedia de levantar as patas dianteiras para alcançar as
mamas da minha mãe. Não via forma de mamar e precisava aquecer e de caminhar.
Lá foram aparecendo outos mirones, todos a torcer o nariz. Fiz
por não prestar atenção, mas não conseguia. Que culpa tinha eu de esperarem por
uma estrela!? E de verem em mim um emplastro!? E não se calavam. Em lugar de me
ajudarem só sentia ferroadas: - Uma lesma! - Não se dá ao trabalho de mamar! A minha mãe parecia
indiferente, mas abanava a cabeça para ambos os lados, não resmungava, mas fungava.
Também não gostava do que ouvia; mas será que degenerei?
Finalmente apareceu quem fez a diferença: - «Sai ao pai! É forte
e bem grande, vai-se desenrascar». Só aquilo já me deu ânimo. Desprezei os sete
olhos mortíferos enterrados em mim e lá endireitei as dianteiras, num esforço gigante
fiz o mesmo com as traseiras, toda a tremer, abocanho uma mama e só a largo
quando fiquei consolada.
Ainda não tinha um ano quando me separaram da minha mãe. Guinchei,
relinchei, escoicinhei para todos os lados, bati com a cabeça contra as grades
o que me valeu os piores insultos do cavalariço. Convidou-me com um banho de chicotada
que me deixaram os lombos a arder. Mais furiosa fiquei, mas tive que aguentar.
Se até nos separarem a minha mãe já me tratava com mal
disfarçada indiferença, a partir desse momento foi claro o abandono a que me
votou.
Ensimesmei, entristeci, fingi que não ligava, mas nunca deixei
de a procurar no pasto com o olhar.
Vi que ficou grávida. Quando o meu irmão nasceu e começou a
pastar com ela, dava nas vistas, um latagão garboso, farejado por doidivanas
bastante mais velhas que ele.
Desconfiei que a minha mãe tinha ciúmes do meu irmão, redobrou
as mesuras com ele para afastar os pretendentes.
Para mim sobravam toda a espécie de humilhações. Sofri para
prazer dos outros. Só me destinavam trabalho mais trabalho, sem liberdade, sem tempo
de recreio e sem a independência de que os outros gozavam.
Fechei-me em mil conjeturas, magoada, pensativa, infeliz.
Para vencer o infortúnio que me dominava deixei-me arrastar para
uns namoricos. Foi sol de pouca dura e senti-me ainda pior, não tinham coração,
ou tinham, mas despedaçado. Só conheciam a sua própria dor.
Reparei que os humanos não eram melhores em nada. Governavam-se
com palavras, enquanto nós vivemos das ações.
Pior ainda é quando são uns mentirosos e maus. Desencadeiam
guerras horrorosas, ateiam fogos criminosos, odeiam-se uns aos outros e
consideram-se racionais.
Nós somos, os irracionais, não cometemos crimes, não temos entre
nós assassinos, não sabemos o que é odiar nem mentir.
Logo que me vi neste novo mundo o que eu passei para me por de pé para mamar! Mas sem
qualquer ajuda levantei-me e comecei a andar.
Os ditos racionais levam um ano para se porem de pé e só com muitas ajudas dei os primeiros passos!
Afinal, em que são superiores? Onde está o mérito? Quem é mais útil? O que mais vale, são as palavras ou as ações?
Comprazia-me, assim, encher o balão do meu «EU». Crescia em mim um
desdém pelos outros o que não motivava simpatias, muito pelo contrário.
Sentia-me revoltada com tudo e com todos. Pensativa, procurava
respostas e forças para varrer do meu íntimo uma crescente animosidade, uma
tendência para julgar os outros, o prazer de condenar, a arrogância
de querer mudar o mundo….
A realidade é que não podia ter a pretensão de mudar os outros
para mudar o mundo, mas podia, muito bem, mudar as minhas reações e o meu olhar
para com os outros. Como? Amá-los tal como eles são, como gostaria que me
amassem a mim. Amar o mundo tal como ele é!
Se todos assim fizerem teremos um Mundo Melhor.
Resumindo, tinha de começar por varrer do meu íntimo toda a
animosidade em lugar de a cultivar, bem como tudo o resto
que me envenena a existência.
Eu já nem podia olhar para a minha mãe e para o meu irmão!
Tinha assim que moderar as minhas reações e a forma de enfrentar os problemas. Mais, posso tirar partido de todo o sofrimento que me fortalece o coração para o abrir aos outros, em lugar de me vitimizar.
Sentia começar a ver claro. Precisava mudar de vida, ouvir a vós imperiosa do meu interior, assumir o trabalho do peregrino e descer ao mais íntimo do meu ser, descobrir o amor. Ir ao encontro do infinito e da Fé.
Neste combate o
destino levou-me de coração renovado ao ceio de uma família que me fez muito
feliz, onde virei a página e esqueci tudo quanto me torturava».
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Não interrompi a Carriça para não a desviar do seu pensamento verdadeiramente inspirador. Uma lição que me deu o sentido da vida.
Por ironia do destino foi no coração desta família que a Carriça travou o seu último combate.
O trabalhador que a recolheu no palheiro das Olgas, prendeu-a à manjedoura com a corda que levava ao pescoço. Como não era costume ficar presa, para se libertar enrodilhou a corda ao pescoço com tamanha violência que se estrangulou.
Este drama da Carriça continua vivo no coração de toda a família.
«E isto deve lembrar-nos que existe uma divindade que talha os nossos destinos, seja qual for a maneira porque nós os delineemos» (Hamlet a Horácio). William Shakespeare.
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