terça-feira, 16 de agosto de 2022

A Nova Vida da Carriça – Contada Pelos Donos


O meu Pai

CARRIÇA - I

A Nova Vida da Carriça – Contada Pelos Novos Donos 

Foi moeda de troca para o pagamento de uma divida.

Era um animal alegre, vigoroso, de uma beleza sadia, exibia todo o esplendor de um puro-sangue.

Teria sido uma grande estrela nas disciplinas equestres, ou mesmo na equitação clássica dada a elegância e agilidade dos seus movimentos.

Possuía uma força indomável que imprimia a um galopar fulminante sempre que montada, sem selim, pelo primogénito do médico, único capaz de tal proeza. Mais parecia voar com asas nas quatro patas tal a destreza e velocidade. Cortava a respiração só de ver a velocidade alucinante do movimento sincronizado das quatro patas. 

Uma outra prova de força, mais própria da alta escola residia na grande facilidade com que suportava todo peso do corpo, de várias centenas de quilos, nas patas traseiras, levantando divertidamente as dianteiras acima da cabeça do filho mais novo do médico, abanando-as com movimentos rápidos na vertical, curtos e desencontrados. Mais uma das suas “brincadeiras”! 

Proporcionava assim, um espetáculo mais próprio de circo, com a diferença de não divertir, mas aterrorizar eventuais espectadores, pois receavam que tal “brincadeira” acabasse em tragédia.

Embora o meio não lhe reconhecesse as competências e não aproveitasse todas das suas capacidades artísticas, facilitava o pleno exercício destas e outras exibições libertando-a de todos os arreios, principalmente freio e do selim cujo aperto no focinho e na barriga lhe dificultava a respiração.

 Era um animal, meigo, vivia feliz e toda a família partilhava dessa mesma felicidade. Revelava que a mudança de dono lhe fora vantajosa pela dedicação, brio e alegria com que assumia todas as tarefas: O serviço exclusivo do médico e a distração dos filhos. Conhecedora dos hábitos de todos sentia fazer parte da família.

Tinha o curral por debaixo da sala de refeições dos donos e, ao amanhecer, esperava pelos primeiros movimentos da casa para relinchar. Era a sua forma de dar os bons-dias.

Dispunha de todo o tempo livre para pastar na mais bonita e produtiva das propriedades do dono, as Olgas.

Atravessada por um ribeiro com água todo o ano, mantinha-se sempre verde. Ao longo da margem interior estendia-se um lameiro que produzia feno para os animais, uma vinha e um poço para rega de uma horta. Na encosta, a norte, ficavam os palheiros. Um maior, destinado à palha e ao feno, outro contíguo, mais pequeno, destinado às alfaias agrícolas, lenha e abrigo dos animais. Este último da mais triste memória, palco de uma tragédia impossível de varrer da memória de toda a família. Um pinheiral delimitava, a norte, toda a propriedade.

Na outra margem, do lado do caminho, predominava o cultivo do trigo, centeio ou milho. Ao fundo uma outra horta, regada com a água abundante do ribeiro. Aqui era possível observar o deslizar elegante de lontras e mesmo de furões.

O que mais preocupava o dono era o prejuízo que dava o amanho destas terras. Chegou a oferecer todo o produto, trigo centeio, milho a quem o fosse colher. Ninguém aceitava. Para o produto não apodrecer na terra tinha de pagar a recolha, sabendo que a venda não chegava sequer para a despesa da colheita.

Era nesta propriedade que a Carriça pastava todo o ano, corria, e brincava com os filhos do dono.

Muito jovem, atravessava toda a aldeia em trote solitário para beber água no tanque dos animais, na fonte do cano, que fica no outro extremo da aldeia. No mesmo trote regressava à cavalariça.

Brava com estranhos, não consentia a simples colocação do selim, menos ainda ser montada por outrem além dos donos.

Um militar de cavalaria, ao saber de tal capricho fez questão de evidenciar a sua especialidade, mas por mais que tentasse o animal rodopiava furioso impossibilitando a montada. Só com a ajuda do dono é que conseguiu trepar para cima do animal. Foi sol de pouca dura. Tomou o freio nos dentes e quando alcançou um galopar desabrido, projetou repentinamente as patas dianteiras para a frente em forma de travão, estancou instantaneamente e projetou o intruso pela cabeça.

Todos os filhos do médico se iniciaram a cavalgar com tenra idade e sem ajudas. O instinto da carriça assim o permitia, facilitava esta tarefa a todos, em particular ao mais novo que não tinha mais que 4/5 anos. Encostava-se bem a um muro com escadas até uma altura de onde era fácil passar uma perna para o lado oposto do selim, segurar no mesmo as mãos, bastando retirar o outro pé do degrau para dar início a um logo passeio pela aldeia. Uma operação simples, mas que não consentia a ninguém, além do patrão. O lento, cuidadoso e seguro caminhar revelava saber bem quem a montava.

Sempre que era preciso ferrar e desferrar era o médico que a conduzia ao “tronco”, no “eiró”, para o ferrador poder fazer o seu trabalho. Ninguém conseguia segurá-la, não obedecia a mais ninguém.

O famoso realizador Akira Kurozawa, no seu filme: “KAGEMUSHA” (A sombra do Guerreiro) retrata de forma magistral a sensibilidade destes seres vivos. (a)

 

Como foi dito, esta é a versão dos novos donos da Carriça…

Acontece que a minha curiosidade, como adolescente, e a intimidade que tinha com a Carriça me levou a interrogá-la sobre o seu passado

Confessou-me que não tinha boas recordações. Nunca experimentou a felicidade das suas companheiras. Nunca conhecera o pai. Soube pela mãe que era um «Senhor» da mais pura raça, com fama e prestígio sem igual e disputado pelas melhores cutelarias.

Com a mãe nunca houve intimidade e poucos meses privou com ela uma vez que não demoram a separar os potros das mães. Viu que emprenhou e se até aí a olhou sempre com mal disfarçada indiferença, com o nascimento do seu irmão foi claro o total abandono a que a votou.

 Não me alongo mais. Nada melhor que saber o que a própria Carriça tem para nos revelar:

CARRIÇA - II 

As Minhas Origens e o Meu Destino – Contados Pela Própria

(A publicar brevemente)

(a) - (A sombra do Guerreiro) que significa “duplo”, o homem que substituiu o falecido “senhor da guerra” e a quem coube a missão de convencer amigos e inimigos de que o “senhor da guerra” continuava vivo com o objetivo de evitar o desencadear de guerras pelos inimigos. A assimilação pelo “duplo” do próprio “senhor da guerra” é feita de tal maneira que a todos convence. Ilude a perspicácia dos familiares e dos generais do conselho de guerra. Só não consegue iludir o cavalo do “senhor da guerra”, “nuvem negra”, que não consentia ser montado por outrem, além do dono. Ao montá-lo o animal não descansou enquanto não se desenvencilhou do intruso e atirou com ele ao chão. Foi o bastante para quem assistiu clamar tratar-se de um intruso sendo desmascarado e despedido de imediato.


 O meu irmão Jorge


Luis


Jorge Luis Teresa Lurdes