Por me parecer atual, embora escrito á precisamente um século, reproduzo a introdução de Romain Rolland ao seu romance CLÉRAMBAULT:
«Quem quer ser útil aos outros tem de principiar por ser livre. O próprio amor não vale nada, se é amor de escravo.
Almas livres, caracteres íntegros, eis o que mais falta ao mundo de hoje. Por caminhos diversos – submissão cadavérica das igrejas, intolerância sufocante das pátrias, unitarismo embrutecedor dos socialismos -, voltamos à vida gregária… o homem separou-se lentamente do húmus quente da terra. Dir-se-á que o seu esforço milenário o esgotou; deixa-se cair de novo na argila; a alma coletiva traga-o; é sorvido pelo hálito pútrido do abismo… Vamos, dominai-vos, vós que não acreditais que o ciclo do homem esteja completo! Ousai destacar-vos do rebanho que vos arrasta! Todo o homem, verdadeiro homem, deve aprender a ficar só no meio de todos, a pensar só por todos – e, em caso de necessidade , contra todos. Pensar. Pensar sinceramente, mesmo que contra todos é ainda por todos…».
Por essa mesma altura Tolstoi escreve:
«O pior mal de que o mundo sofre…. Não é a força dos maus, mas a fraqueza dos melhores. E esta fraqueza tem em parte a sua origem na preguiça da vontade, na timidez da moral».
Não me sinto habilitado para fazer qualquer comentário à carta do Papa Francisco, mas considero que é uma pedrada no charco em que vivemos, pelo que deve merecer a melhor atenção de todos e ter a maior divulgação.
CARTA ENCÍCLICA
FRATELLI TUTTI
DO SANTO PADRE
FRANCISCO
SOBRE A FRATERNIDADE
E A AMIZADE SOCIAL
«FRATELLI TUTTI»:[1] escrevia São Francisco de Assis, dirigindo-se a seus irmãos e irmãs para lhes propor uma forma de vida com sabor a Evangelho. Destes conselhos, quero destacar o convite a um amor que ultrapassa as barreiras da geografia e do espaço; nele declara feliz quem ama o outro, «o seu irmão, tanto quando está longe, como quando está junto de si».[2] Com poucas e simples palavras, explicou o essencial duma fraternidade aberta, que permite reconhecer, valorizar e amar todas as pessoas independentemente da sua proximidade física, do ponto da terra onde cada uma nasceu ou habita.
2. Este Santo do amor fraterno, da simplicidade e da alegria, que
me inspirou a escrever a encíclica Laudato si’, volta a inspirar-me para
dedicar esta nova encíclica à fraternidade e à amizade social. Com efeito, São
Francisco, que se sentia irmão do sol, do mar e do vento, sentia-se ainda mais
unido aos que eram da sua própria carne. Semeou paz por toda a parte e andou
junto dos pobres, abandonados, doentes, descartados, dos últimos.
Sem fronteiras
3. Na sua vida, há um episódio que nos mostra o seu coração sem
fronteiras, capaz de superar as distâncias de proveniência, nacionalidade, cor
ou religião: é a sua visita ao Sultão Malik-al-Kamil, no Egito. A mesma exigiu
dele um grande esforço, devido à sua pobreza, aos poucos recursos que possuía,
à distância e às diferenças de língua, cultura e religião. Aquela viagem, num
momento histórico marcado pelas Cruzadas, demonstrava ainda mais a grandeza do
amor que queria viver, desejoso de abraçar a todos. A fidelidade ao seu Senhor
era proporcional ao amor que nutria pelos irmãos e irmãs. Sem ignorar as
dificuldades e perigos, São Francisco foi ao encontro do Sultão com a mesma
atitude que pedia aos seus discípulos: sem negar a própria identidade, quando
estiverdes «entre sarracenos e outros infiéis (...), não façais litígios nem
contendas, mas sede submissos a toda a criatura humana por amor de Deus».[3] No
contexto de então, era um pedido extraordinário. É impressionante que, há
oitocentos anos, Francisco recomende evitar toda a forma de agressão ou
contenda e também viver uma «submissão» humilde e fraterna, mesmo com quem não
partilhasse a sua fé.
4. Não fazia guerra dialética impondo doutrinas, mas comunicava o
amor de Deus; compreendera que «Deus é amor, e quem permanece no amor,
permanece em Deus» (1 Jo 4, 16). Assim foi pai fecundo que suscitou
o sonho duma sociedade fraterna, pois «só o homem que aceita aproximar-se das
outras pessoas com o seu próprio movimento, não para retê-las no que é seu, mas
para ajudá-las a serem mais elas mesmas, é que se torna realmente pai».[4] Naquele
mundo cheio de torreões de vigia e muralhas defensivas, as cidades viviam
guerras sangrentas entre famílias poderosas, ao mesmo tempo que cresciam as
áreas miseráveis das periferias excluídas. Lá, Francisco recebeu no seu íntimo
a verdadeira paz, libertou-se de todo o desejo de domínio sobre os outros,
fez-se um dos últimos e procurou viver em harmonia com todos. Foi ele que
motivou estas páginas.
5. As questões relacionadas com a fraternidade e a amizade social
sempre estiveram entre as minhas preocupações. A elas me referi repetidamente
nos últimos anos e em vários lugares. Nesta encíclica, quis reunir muitas
dessas intervenções, situando-as num contexto mais amplo de reflexão. Além
disso, se na redação da Laudato si´ tive uma fonte de
inspiração no meu irmão Bartolomeu, o Patriarca ortodoxo que propunha com
grande vigor o cuidado da criação, agora senti-me especialmente estimulado pelo
Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb, com quem me encontrei, em Abu Dhabi, para lembrar
que Deus «criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na
dignidade, e os chamou a conviver entre si como irmãos».[5] Não
se tratou de mero ato diplomático, mas duma reflexão feita em diálogo e dum
compromisso conjunto. Esta encíclica reúne e desenvolve grandes temas expostos
naquele documento que assinamos juntos. E aqui, na minha linguagem própria,
acolhi também numerosas cartas e documentos com reflexões que recebi de tantas
pessoas e grupos de todo o mundo.
6. As páginas seguintes não pretendem resumir a doutrina sobre o
amor fraterno, mas detêm-se na sua dimensão universal, na sua abertura a todos.
Entrego esta encíclica social como humilde contribuição para a reflexão, a fim
de que, perante as várias formas atuais de eliminar ou ignorar os outros,
sejamos capazes de reagir com um novo sonho de fraternidade e amizade social
que não se limite a palavras. Embora a tenha escrito a partir das minhas
convicções cristãs, que me animam e nutrem, procurei fazê-lo de tal maneira que
a reflexão se abra ao diálogo com todas as pessoas de boa vontade.
7. Além disso, quando estava a redigir esta carta, irrompeu de
forma inesperada a pandemia do Covid-19 que deixou a descoberto as nossas
falsas seguranças. Por cima das várias respostas que deram os diferentes
países, ficou evidente a incapacidade de agir em conjunto. Apesar de estarmos
superconectados, verificou-se uma fragmentação que tornou mais difícil resolver
os problemas que nos afetam a todos. Se alguém pensa que se tratava apenas de
fazer funcionar melhor o que já fazíamos, ou que a única lição a tirar é que
devemos melhorar os sistemas e regras já existentes, está a negar a realidade.
8. Desejo ardentemente que, neste tempo que nos cabe viver,
reconhecendo a dignidade de cada pessoa humana, possamos fazer renascer, entre
todos, um anseio mundial de fraternidade. Entre todos: «Aqui está um ótimo
segredo para sonhar e tornar a nossa vida uma bela aventura. Ninguém pode
enfrentar a vida isoladamente (…); precisamos duma comunidade que nos apoie,
que nos auxilie e dentro da qual nos ajudemos mutuamente a olhar em frente.
Como é importante sonhar juntos! (…) Sozinho, corres o risco de ter miragens,
vendo aquilo que não existe; é juntos que se constroem os sonhos».[6] Sonhemos
como uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos
desta mesma terra que nos alberga a todos, cada qual com a riqueza da sua fé ou
das suas convicções, cada qual com a própria voz, mas todos irmãos.
Capítulo I
AS SOMBRAS DUM MUNDO FECHADO
9. Sem pretender efetuar uma análise exaustiva nem tomar em
consideração todos os aspetos da realidade que vivemos, proponho apenas
manter-nos atentos a algumas tendências do mundo atual que dificultam o
desenvolvimento da fraternidade universal.
Sonhos desfeitos em
pedaços
10. Durante décadas, pareceu que o mundo tinha aprendido com tantas
guerras e fracassos e, lentamente, ia caminhando para variadas formas de
integração. Por exemplo, avançou o sonho duma Europa unida, capaz de reconhecer
raízes comuns e regozijar-se com a diversidade que a habita. Lembremos «a firme
convicção dos Pais fundadores da União Europeia, que desejavam um futuro
assente na capacidade de trabalhar juntos para superar as divisões e promover a
paz e a comunhão entre todos os povos do continente».[7] E
ganhou força também o anseio duma integração latino-americana, e alguns passos
começaram a ser dados. Noutros países e regiões, houve tentativas de
pacificação e reaproximações que foram bem-sucedidas e outras que pareciam
promissoras.
11. Mas a história dá sinais de regressão. Reacendem-se conflitos
anacrónicos que se consideravam superados, ressurgem nacionalismos fechados,
exacerbados, ressentidos e agressivos. Em vários países, uma certa noção de
unidade do povo e da nação, penetrada por diferentes ideologias, cria novas
formas de egoísmo e de perda do sentido social mascaradas por uma suposta
defesa dos interesses nacionais. Isto lembra-nos que «cada geração deve fazer
suas as lutas e as conquistas das gerações anteriores e levá-las a metas ainda
mais altas. É o caminho. O bem, como aliás o amor, a justiça e a solidariedade
não se alcançam duma vez para sempre; hão de ser conquistados cada dia. Não é
possível contentar-se com o que já se obteve no passado nem instalar-se a
gozá-lo como se esta situação nos levasse a ignorar que muitos dos nossos irmãos
ainda sofrem situações de injustiça que nos interpelam a todos».[8]
12. «Abrir-se ao mundo» é uma expressão de que, hoje, se apropriaram
a economia e as finanças. Refere-se exclusivamente à abertura aos interesses
estrangeiros ou à liberdade dos poderes económicos para investir sem entraves
nem complicações em todos os países. Os conflitos locais e o desinteresse pelo
bem comum são instrumentalizados pela economia global para impor um modelo
cultural único. Esta cultura unifica o mundo, mas divide as pessoas e as
nações, porque «a sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas
não nos faz irmãos».[9] Encontramo-nos
mais sozinhos do que nunca neste mundo massificado, que privilegia os interesses
individuais e debilita a dimensão comunitária da existência. Em contrapartida,
aumentam os mercados, onde as pessoas desempenham funções de consumidores ou de
espectadores. O avanço deste globalismo favorece normalmente a identidade dos
mais fortes que se protegem a si mesmos, mas procura dissolver as identidades
das regiões mais frágeis e pobres, tornando-as mais vulneráveis e dependentes.
Desta forma, a política torna-se cada vez mais frágil perante os poderes
económicos transnacionais que aplicam o lema «divide e reinarás».
O fim da consciência
histórica
13. Pelo mesmo motivo, favorece também uma perda do sentido da
história que desagrega ainda mais. Nota-se a penetração cultural duma espécie
de «desconstrucionismo», em que a liberdade humana pretende construir tudo a
partir do zero. De pé, deixa apenas a necessidade de consumir sem limites e a
acentuação de muitas formas de individualismo sem conteúdo. Neste contexto,
colocava-se um conselho que dei aos jovens: «Se uma pessoa vos fizer uma
proposta dizendo para ignorardes a história, não aproveitardes da experiência
dos mais velhos, desprezardes todo o passado olhando apenas para o futuro que
essa pessoa vos oferece, não será uma forma fácil de vos atrair para a sua
proposta a fim de fazerdes apenas o que ela diz? Aquela pessoa precisa de vós
vazios, desenraizados, desconfiados de tudo, para vos fiardes apenas nas suas
promessas e vos submeterdes aos seus planos. Assim procedem as ideologias de
variadas cores, que destroem (ou desconstroem) tudo o que for diferente,
podendo assim reinar sem oposições. Para isso, precisam de jovens que desprezem
a história, rejeitem a riqueza espiritual e humana que se foi transmitindo
através das gerações, ignorem tudo quanto os precedeu».[10]
14. São as novas formas de colonização cultural. Não nos esqueçamos
de que «os povos que alienam a sua tradição e – por mania imitativa, violência
imposta, imperdoável negligência ou apatia – toleram que se lhes roube a alma,
perdem, juntamente com a própria fisionomia espiritual, a sua consistência
moral e, por fim, a independência ideológica, económica e política».[11] Uma
maneira eficaz de dissolver a consciência histórica, o pensamento crítico, o
empenho pela justiça e os percursos de integração é esvaziar de sentido ou
manipular as «grandes» palavras. Que significado têm hoje palavras como
democracia, liberdade, justiça, unidade? Foram manipuladas e desfiguradas para
utilizá-las como instrumento de domínio, como títulos vazios de conteúdo que
podem servir para justificar qualquer ação.
Sem um projeto para
todos
15. A melhor maneira de dominar e avançar sem entraves é semear o
desânimo e despertar uma desconfiança constante, mesmo disfarçada por detrás da
defesa de alguns valores. Usa-se hoje, em muitos países, o mecanismo político
de exasperar, exacerbar e polarizar. Com várias modalidades, nega-se a outros o
direito de existir e pensar e, para isso, recorre-se à estratégia de
ridicularizá-los, insinuar suspeitas sobre eles e reprimi-los. Não se acolhe a
sua parte da verdade, os seus valores, e assim a sociedade empobrece-se e acaba
reduzida à prepotência do mais forte. Desta forma, a política deixou de ser um
debate saudável sobre projetos a longo prazo para o desenvolvimento de todos e
o bem comum, limitando-se a receitas efémeras de marketing cujo recurso mais
eficaz está na destruição do outro. Neste mesquinho jogo de desqualificações, o
debate é manipulado para o manter no estado de controvérsia e contraposição.
16. Nesta luta de interesses que nos coloca a todos contra todos,
onde vencer se torna sinónimo de destruir, como se pode levantar a cabeça para
reconhecer o vizinho ou ficar ao lado de quem está caído na estrada? Hoje, um
projeto com grandes objetivos para o desenvolvimento de toda a humanidade soa
como um delírio. Aumentam as distâncias entre nós, e a dura e lenta marcha rumo
a um mundo unido e mais justo sofre um novo e drástico revés.
17. Cuidar do mundo que nos rodeia e sustenta significa cuidar de
nós mesmos. Mas precisamos de nos constituirmos como um «nós» que habita a casa
comum. Um tal cuidado não interessa aos poderes económicos que necessitam dum
ganho rápido. Frequentemente as vozes que se levantam em defesa do ambiente são
silenciadas ou ridicularizadas, disfarçando de racionalidade o que não passa de
interesses particulares. Nesta cultura que estamos a desenvolver, vazia, fixada
no imediato e sem um projeto comum, «é previsível que, perante o esgotamento de
alguns recursos, se vá criando um cenário favorável para novas guerras,
disfarçadas sob nobres reivindicações».[12]
O descarte mundial
18. Partes da humanidade parecem sacrificáveis em benefício duma
seleção que favorece a um setor humano digno de viver sem limites. No fundo,
«as pessoas já não são vistas como um valor primário a respeitar e tutelar,
especialmente se são pobres ou deficientes, se “ainda não servem” (como os
nascituros) ou “já não servem” (como os idosos). Tornamo-nos insensíveis a
qualquer forma de desperdício, a começar pelo alimentar, que aparece entre os
mais deploráveis».[13]
19. A falta de filhos, que provoca um envelhecimento da população,
juntamente com o abandono dos idosos numa dolorosa solidão, exprimem
implicitamente que tudo acaba connosco, que só contam os nossos interesses
individuais. Assim, «objeto de descarte não são apenas os alimentos ou os bens
supérfluos, mas muitas vezes os próprios seres humanos».[14] Vimos
o que aconteceu com as pessoas de idade nalgumas partes do mundo por causa do
coronavírus. Não deviam morrer assim. Na realidade, porém, tinha já acontecido
algo semelhante devido às ondas de calor e noutras circunstâncias: cruelmente
descartados. Não nos damos conta de que isolar os idosos e abandoná-los à
responsabilidade de outros sem um acompanhamento familiar adequado e amoroso
mutila e empobrece a própria família. Além disso, acaba por privar os jovens
daquele contacto que lhes é necessário com as suas raízes e com uma sabedoria
que a juventude, sozinha, não pode alcançar.
20. Este descarte exprime-se de variadas maneiras como, por exemplo,
na obsessão por reduzir os custos laborais sem se dar conta das graves
consequências que provoca, pois o desemprego daí resultante tem como efeito
direto alargar as fronteiras da pobreza.[15] Além
disso, o descarte assume formas abjetas, que julgávamos já superadas, como o
racismo que se dissimula mas não cessa de reaparecer. De novo nos envergonham
as expressões de racismo, demonstrando assim que os supostos avanços da
sociedade não são assim tão reais nem estão garantidos duma vez por todas.
21. Há regras económicas que foram eficazes para o crescimento, mas
não de igual modo para o desenvolvimento humano integral.[16] Aumentou
a riqueza, mas sem equidade, e assim «nascem novas pobrezas».[17] Quando
dizem que o mundo moderno reduziu a pobreza, fazem-no medindo-a com critérios
doutros tempos não comparáveis à realidade atual. Pois noutros tempos, por
exemplo, não ter acesso à energia elétrica não era considerado um sinal de
pobreza nem causava grave incómodo. A pobreza sempre se analisa e compreende no
contexto das possibilidades reais dum momento histórico concreto.
Direitos humanos não
suficientemente universais
22. Muitas vezes constata-se que, de facto, os direitos humanos não
são iguais para todos. O respeito destes direitos «é condição preliminar para o
próprio progresso económico e social de um país. Quando a dignidade do homem é
respeitada e os seus direitos são reconhecidos e garantidos, florescem também a
criatividade e a audácia, podendo a pessoa humana explanar suas inúmeras
iniciativas a favor do bem comum».[18] Mas,
«observando com atenção as nossas sociedades contemporâneas, deparamos com
numerosas contradições que induzem a perguntar-nos se deveras a igual dignidade
de todos os seres humanos, solenemente proclamada há 70 anos, é reconhecida,
respeitada, protegida e promovida em todas as circunstâncias. Persistem hoje no
mundo inúmeras formas de injustiça, alimentadas por visões antropológicas redutivas e por um
modelo económico fundado no lucro, que não hesita em explorar, descartar e até matar o homem. Enquanto uma parte da
humanidade vive na opulência, outra parte vê a própria dignidade não
reconhecida, desprezada ou espezinhada e os seus direitos fundamentais
ignorados ou violados».[19] Que
diz isto a respeito da igualdade de direitos fundada na mesma dignidade humana?
23. De modo análogo, a organização das sociedades em todo o mundo
ainda está longe de refletir com clareza que as mulheres têm exatamente a mesma
dignidade e idênticos direitos que os homens. As palavras dizem uma coisa, mas
as decisões e a realidade gritam outra. Com efeito, «duplamente pobres são as
mulheres que padecem situações de exclusão, maus-tratos e violência, porque
frequentemente têm menores possibilidades de defender os seus direitos».[20]
24. Reconhecemos igualmente que, «apesar de a comunidade
internacional ter adotado numerosos acordos para pôr termo à escravatura em
todas as suas formas e ter lançado diversas estratégias para combater este
fenómeno, ainda hoje milhões de pessoas – crianças, homens e mulheres de todas
as idades – são privadas da liberdade e constrangidas a viver em condições
semelhantes às da escravatura. (…) Hoje como ontem, na raiz da escravatura,
está uma conceção da pessoa humana que admite a possibilidade de a tratar como
um objeto. (…) Com a força, o engano, a coação física ou psicológica, a pessoa
humana – criada à imagem e semelhança de Deus – é privada da liberdade, mercantilizada,
reduzida a propriedade de alguém; é tratada como meio, e não como fim». As
redes criminosas «utilizam habilmente as tecnologias informáticas modernas para
atrair jovens e adolescentes de todos os cantos do mundo».[21] E
a aberração não tem limites quando são subjugadas mulheres, forçadas depois a
abortar; um ato abominável que chega mesmo ao sequestro da pessoa, para vender
os seus órgãos. Isto torna o tráfico de pessoas e outras formas atuais de
escravatura num problema mundial que precisa de ser tomado a sério pela
humanidade no seu conjunto, porque «assim como as organizações criminosas usam
redes globais para alcançar os seus objetivos, assim também a ação para vencer
este fenómeno requer um esforço comum e igualmente global por parte dos
diferentes atores que compõem a sociedade».[22]
Conflito e medo
25. As guerras, os atentados, as perseguições por motivos raciais ou
religiosos e tantas afrontas contra a dignidade humana são julgados de maneira
diferente, segundo convenham ou não a certos interesses fundamentalmente
económicos: o que é verdade quando convém a uma pessoa poderosa, deixa de o ser
quando já não a beneficia. Estas situações de violência vão-se «multiplicando
cruelmente em muitas regiões do mundo, a ponto de assumir os contornos daquela
que se poderia chamar uma “terceira guerra mundial por pedaços”».[23]
26. Isto não surpreende, se atendermos à falta de horizontes capazes
de nos fazer convergir para a unidade, pois em qualquer guerra o que acaba
destruído é «o próprio projeto de fraternidade, inscrito na vocação da família
humana», pelo que «toda a situação de ameaça alimenta a desconfiança e a
retirada».[24] Assim,
o nosso mundo avança numa dicotomia sem sentido, pretendendo «garantir a
estabilidade e a paz com base numa falsa segurança sustentada por uma
mentalidade de medo e desconfiança».[25]
27. Paradoxalmente, existem medos ancestrais que não foram superados
pelo progresso tecnológico; mais ainda, souberam esconder-se e revigorar-se por
detrás das novas tecnologias. Também hoje, atrás das muralhas da cidade antiga
está o abismo, o território do desconhecido, o deserto. O que vier de lá não é
fiável, porque desconhecido, não familiar, não pertence à aldeia. Trata-se do
território do que é «bárbaro», do qual há que defender-se a todo o custo.
Consequentemente, criam-se novas barreiras de autodefesa, de tal modo que deixa
de haver o mundo, para existir apenas o «meu» mundo; e muitos deixam de ser
considerados seres humanos com uma dignidade inalienável passando a ser apenas
«os outros». Reaparece «a tentação de fazer uma cultura dos muros, de erguer os
muros, muros no coração, muros na terra, para impedir este encontro com outras
culturas, com outras pessoas. E quem levanta um muro, quem constrói um muro,
acabará escravo dentro dos muros que construiu, sem horizontes. Porque lhe
falta esta alteridade».[26]
28. A solidão, os medos e a insegurança de tantas pessoas que se
sentem abandonadas pelo sistema, fazem com que se crie um terreno fértil para
as máfias. Com efeito, estas impõem-se apresentando-se como «protetoras» dos
esquecidos, muitas vezes através de vários tipos de ajuda, enquanto perseguem
os seus interesses criminosos. Há uma pedagogia tipicamente mafiosa que, com um
falso espírito comunitário, cria laços de dependência e subordinação, dos quais
é muito difícil libertar-se.
Globalização e progresso
sem um rumo comum
29. O Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb e eu não ignoramos os avanços
positivos que se verificaram na ciência, na tecnologia, na medicina, na
indústria e no bem-estar, sobretudo nos países desenvolvidos. Todavia
«ressaltamos que, juntamente com tais progressos históricos, grandes e
apreciados, se verifica uma deterioração da ética, que condiciona a atividade
internacional, e um enfraquecimento dos valores espirituais e do sentido de
responsabilidade. Tudo isto contribui para disseminar uma sensação geral de
frustração, solidão e desespero, (…) nascem focos de tensão e se acumulam armas
e munições, numa situação mundial dominada pela incerteza, pela deceção e pelo
medo do futuro e controlada por míopes interesses económicos». Assinalamos
também «as graves crises políticas, a injustiça e a falta duma distribuição
equitativa dos recursos naturais (…). A respeito de tais crises que fazem
morrer à fome milhões de crianças, já reduzidas a esqueletos humanos por causa
da pobreza e da fome, reina um inaceitável silêncio internacional».[27] Perante
tal panorama, embora nos fascinem os inúmeros avanços, não descortinamos um
rumo verdadeiramente humano.
30. No mundo atual, esmorecem os sentimentos de pertença à mesma
humanidade; e o sonho de construirmos juntos a justiça e a paz parece uma
utopia doutros tempos. Vemos como reina uma indiferença acomodada, fria e
globalizada, filha duma profunda desilusão que se esconde por detrás desta
ilusão enganadora: considerar que podemos ser omnipotentes e esquecer que nos
encontramos todos no mesmo barco. Esta desilusão, que deixa para trás os
grandes valores fraternos, conduz «a uma espécie de cinismo. Esta é a tentação
que temos diante de nós, se formos por este caminho do desengano ou da
desilusão. (…) O isolamento e o fechamento em nós mesmos ou nos próprios
interesses nunca serão o caminho para voltar a dar esperança e realizar uma
renovação, mas é a proximidade, a cultura do encontro. O isolamento, não; a
proximidade, sim. Cultura do confronto, não; cultura do encontro, sim».[28]
31. Neste mundo que corre sem um rumo comum, respira-se uma
atmosfera em que «a distância entre a obsessão pelo próprio bem-estar e a
felicidade da humanidade partilhada parece aumentar: até fazer pensar que entre
o indivíduo e a comunidade humana já esteja em curso um cisma. (...) Porque uma
coisa é sentir-se obrigado a viver juntos, outra é apreciar a riqueza e a
beleza das sementes de vida em comum que devem ser procuradas e cultivadas em
conjunto».[29] A
tecnologia regista progressos contínuos, mas «como seria bom se, ao aumento das
inovações científicas e tecnológicas, correspondesse também uma equidade e uma
inclusão social cada vez maior! Como seria bom se, enquanto descobrimos novos
planetas longínquos, também descobríssemos as necessidades do irmão e da irmã
que orbitam ao nosso redor!»[30]
As pandemias e outros
flagelos da história
32. É verdade que uma tragédia global como a pandemia do Covid-19
despertou, por algum tempo, a consciência de sermos uma comunidade mundial que
viaja no mesmo barco, onde o mal de um prejudica a todos. Recordamo-nos de que
ninguém se salva sozinho, que só é possível salvar-nos juntos. Por isso, «a
tempestade – dizia eu – desmascara a nossa vulnerabilidade e deixa a descoberto
as falsas e supérfluas seguranças com que construímos os nossos programas, os
nossos projetos, os nossos hábitos e prioridades. (…) Com a tempestade, caiu a
maquilhagem dos estereótipos com que mascaramos o nosso “eu” sempre preocupado
com a própria imagem; e ficou a descoberto, uma vez mais, esta (abençoada)
pertença comum a que não nos podemos subtrair: a pertença como irmãos».[31]
33. O mundo avançava implacavelmente para uma economia que,
utilizando os progressos tecnológicos, procurava reduzir os «custos humanos»; e
alguns pretendiam fazer-nos crer que era suficiente a liberdade de mercado para
garantir tudo. Mas, o golpe duro e inesperado desta pandemia fora de controle
obrigou, por força, a pensar nos seres humanos, em todos, mais do que nos
benefícios de alguns. Hoje podemos reconhecer que «alimentamo-nos com sonhos de
esplendor e grandeza, e acabamos por comer distração, fechamento e solidão;
empanturramo-nos de conexões, e perdemos o gosto da fraternidade. Buscamos o
resultado rápido e seguro, e encontramo-nos oprimidos pela impaciência e a
ansiedade. Prisioneiros da virtualidade, perdemos o gosto e o sabor da
realidade».[32] A
tribulação, a incerteza, o medo e a consciência dos próprios limites, que a
pandemia despertou, fazem ressoar o apelo a repensar os nossos estilos de vida,
as nossas relações, a organização das nossas sociedades e sobretudo o sentido
da nossa existência.
34. Se tudo está interligado, é difícil pensar que este desastre
mundial não tenha a ver com a nossa maneira de encarar a realidade, pretendendo
ser senhores absolutos da própria vida e de tudo o que existe. Não quero dizer
que se trate duma espécie de castigo divino. Nem seria suficiente afirmar que o
dano causado à natureza acaba por se cobrar dos nossos atropelos. É a própria
realidade que geme e se rebela… Vem à mente o conhecido verso do poeta Virgílio
evocando as lágrimas das coisas, das vicissitudes da história.[33]
35. Contudo rapidamente esquecemos as lições da história, «mestra da
vida».[34] Passada
a crise sanitária, a pior reação seria cair ainda mais num consumismo febril e
em novas formas de autoproteção egoísta. No fim, oxalá já não existam «os
outros», mas apenas um «nós». Oxalá não seja mais um grave episódio da
história, cuja lição não fomos capazes de aprender. Oxalá não nos esqueçamos
dos idosos que morreram por falta de respiradores, em parte como resultado de
sistemas de saúde que foram sendo desmantelados ano após ano. Oxalá não seja
inútil tanto sofrimento, mas tenhamos dado um salto para uma nova forma de
viver e descubramos, enfim, que precisamos e somos devedores uns dos outros,
para que a humanidade renasça com todos os rostos, todas as mãos e todas as
vozes, livre das fronteiras que criamos.
36. Se não conseguirmos recuperar a paixão compartilhada por uma
comunidade de pertença e solidariedade, à qual saibamos destinar tempo, esforço
e bens, desabará ruinosamente a ilusão global que nos engana e deixará muitos à
mercê da náusea e do vazio. Além disso, não se deveria ignorar, ingenuamente,
que «a obsessão por um estilo de vida consumista, sobretudo quando poucos têm
possibilidades de o manter, só poderá provocar violência e destruição
recíproca».[35] O
princípio «salve-se quem puder» traduzir-se-á rapidamente no lema «todos contra
todos», e isso será pior que uma pandemia.
Sem dignidade humana nas
fronteiras
37. Tanto na propaganda dalguns regimes políticos populistas como na
leitura de abordagens económico-liberais, defende-se que é preciso evitar a
todo o custo a chegada de pessoas migrantes. Simultaneamente argumenta-se que
convém limitar a ajuda aos países pobres, para que toquem o fundo e decidam
adotar medidas de austeridade. Não se dão conta que, atrás destas afirmações
abstratas difíceis de sustentar, há muitas vidas dilaceradas. Muitos fogem da
guerra, de perseguições, de catástrofes naturais. Outros, com pleno direito,
«andam à procura de oportunidades para si e para a sua família. Sonham com um
futuro melhor, e desejam criar condições para que se realize».[36]
38. Infelizmente, outros são «atraídos pela cultura ocidental,
nutrindo por vezes expetativas irrealistas que os expõem a pesadas deceções.
Traficantes sem escrúpulos, frequentemente ligados a cartéis da droga e das
armas, exploram a fragilidade dos imigrantes, que, ao longo do seu percurso,
muitas vezes encontram a violência, o tráfico de seres humanos, o abuso psicológico
e mesmo físico e tribulações indescritíveis».[37] As
pessoas que emigram «experimentam a separação do seu contexto de origem e,
muitas vezes, também um desenraizamento cultural e religioso. A fratura tem a
ver também com as comunidades de origem, que perdem os elementos mais vigorosos
e empreendedores, e as famílias, particularmente quando emigra um ou ambos os
progenitores, deixando os filhos no país de origem».[38] Por
conseguinte, também deve ser «reafirmado o direito a não emigrar, isto é, a ter
condições para permanecer na própria terra».[39]
39. Ainda por cima, «nalguns países de chegada, os fenómenos
migratórios suscitam alarme e temores, frequentemente fomentados e explorados
para fins políticos. Assim se difunde uma mentalidade xenófoba, de clausura e
retraimento em si mesmos».[40] Os
migrantes não são considerados suficientemente dignos de participar na vida
social como os outros, esquecendo-se que têm a mesma dignidade intrínseca de
toda e qualquer pessoa. Consequentemente, têm de ser eles os «protagonistas da
sua própria promoção».[41] Nunca
se dirá que não sejam humanos, mas na prática, com as decisões e a maneira de
os tratar, manifesta-se que são considerados menos valiosos, menos importantes,
menos humanos. É inaceitável que os cristãos partilhem esta mentalidade e estas
atitudes, fazendo às vezes prevalecer determinadas preferências políticas em
vez das profundas convicções da sua própria fé: a dignidade inalienável de toda
a pessoa humana, independentemente da sua origem, cor ou religião, e a lei
suprema do amor fraterno.
40. «As migrações constituirão uma pedra angular do futuro do
mundo».[42] Hoje,
porém, são afetadas por uma «perda daquele sentido de responsabilidade
fraterna, sobre o qual assenta toda a sociedade civil».[43] A
Europa, por exemplo, corre sérios riscos de ir por este caminho. Entretanto,
«ajudada pelo seu grande património cultural e religioso, possui os
instrumentos para defender a centralidade da pessoa humana e encontrar o justo
equilíbrio entre estes dois deveres: o dever moral de tutelar os direitos dos
seus cidadãos e o dever de garantir a assistência e o acolhimento dos
imigrantes».[44]
41. Compreendo que alguns tenham dúvidas e sintam medo à vista das
pessoas migrantes; compreendo-o como um aspeto do instinto natural de
autodefesa. Mas também é verdade que uma pessoa e um povo só são fecundos, se
souberem criativamente integrar no seu seio a abertura aos outros. Convido a
ultrapassar estas reações primárias, porque «o problema surge quando [estas
dúvidas e este medo] condicionam de tal forma o nosso modo de pensar e agir,
que nos tornam intolerantes, fechados, talvez até – sem disso nos apercebermos
– racistas. E assim o medo priva-nos do desejo e da capacidade de encontrar o
outro».[45]
A ilusão da comunicação
42. Paradoxalmente se, por um lado, crescem as atitudes fechadas e
intolerantes que, à vista dos outros, nos fecham em nós próprios, por outro,
reduzem-se ou desaparecem as distâncias, a ponto de deixar de existir o direito
à intimidade. Tudo se torna uma espécie de espetáculo que pode ser espiado,
observado, e a vida acaba exposta a um controle constante. Na comunicação
digital, quer-se mostrar tudo, e cada indivíduo torna-se objeto de olhares que
esquadrinham, desnudam e divulgam, muitas vezes anonimamente. Dilui-se o
respeito pelo outro e, assim, ao mesmo tempo que o apago, ignoro e mantenho
afastado, posso despudoradamente invadir até ao mais recôndito da sua vida.
43. Entretanto os movimentos digitais de ódio e destruição não
constituem – como alguns pretendem fazer crer – uma ótima forma de mútua ajuda,
mas meras associações contra um inimigo. Além disso, «os meios de comunicação
digitais podem expor ao risco de dependência, isolamento e perda progressiva de
contacto com a realidade concreta, dificultando o desenvolvimento de relações
interpessoais autênticas».[46] Fazem
falta gestos físicos, expressões do rosto, silêncios, linguagem corpórea e até
o perfume, o tremor das mãos, o rubor, a transpiração, porque tudo isso fala e
faz parte da comunicação humana. As relações digitais, que dispensam da fadiga
de cultivar uma amizade, uma reciprocidade estável e até um consenso que
amadurece com o tempo, têm aparência de sociabilidade, mas não constroem
verdadeiramente um «nós»; na verdade, habitualmente dissimulam e ampliam o
mesmo individualismo que se manifesta na xenofobia e no desprezo dos frágeis. A
conexão digital não basta para lançar pontes, não é capaz de unir a humanidade.
Agressividade
despudorada
44. Ao mesmo tempo que defendem o próprio isolamento consumista e
acomodado, as pessoas escolhem vincular-se de maneira constante e obsessiva.
Isto favorece o pululamento de formas insólitas de agressividade, com insultos,
impropérios, difamação, afrontas verbais até destroçar a figura do outro, num
desregramento tal que se existisse no contacto pessoal acabaríamos todos por
nos destruir entre nós. A agressividade social encontra um espaço de ampliação
incomparável nos dispositivos móveis e nos computadores.
45. Isto permitiu que as ideologias perdessem todo o respeito.
Aquilo que ainda há pouco tempo uma pessoa não podia dizer sem correr o risco
de perder o respeito de todos, hoje pode ser pronunciado com toda a grosseria,
até por algumas autoridades políticas, e ficar impune. Não se pode ignorar que
«há interesses económicos gigantescos que operam no mundo digital, capazes de
realizar formas de controle que são tão subtis quanto invasivas, criando
mecanismos de manipulação das consciências e do processo democrático. O
funcionamento de muitas plataformas acaba frequentemente por favorecer o
encontro entre pessoas com as mesmas ideias, dificultando o confronto entre as
diferenças. Estes circuitos fechados facilitam a divulgação de informações e
notícias falsas, fomentando preconceitos e ódios».[47]
46. Deve-se reconhecer que os fanatismos, que induzem a destruir os
outros, são protagonizados também por pessoas religiosas, sem excluir os
cristãos, que podem «fazer parte de redes de violência verbal através da
internet e vários fóruns ou espaços de intercâmbio digital. Mesmo nos media católicos,
é possível ultrapassar os limites, tolerando-se a difamação e a calúnia e parecendo
excluir qualquer ética e respeito pela fama alheia».[48] Agindo
assim, qual contribuição se dá para a fraternidade que o Pai comum nos propõe?
Informação sem sabedoria
47. A verdadeira sabedoria pressupõe o encontro com a realidade.
Hoje, porém, tudo se pode produzir, dissimular, modificar. Isto faz com que o
encontro direto com as limitações da realidade se torne insuportável. Em
consequência, implementa-se um mecanismo de «seleção», criando-se o hábito de
separar imediatamente o que gosto daquilo que não gosto, as coisas atraentes
das desagradáveis. A mesma lógica preside à escolha das pessoas com quem se
decide partilhar o mundo. Assim, as pessoas ou situações que feriam a nossa
sensibilidade ou nos causavam aversão, hoje são simplesmente eliminadas nas
redes virtuais, construindo um círculo virtual que nos isola do mundo em que
vivemos.
48. Sentar-se a escutar o outro, caraterístico dum encontro humano,
é um paradigma de atitude recetiva, de quem supera o narcisismo e acolhe o
outro, presta-lhe atenção, dá-lhe lugar no próprio círculo. Mas «o mundo de
hoje, na sua maioria, é um mundo surdo (…). Às vezes a velocidade do mundo
moderno, o frenesi impede-nos de escutar bem o que outro diz. Quando está a
meio do seu diálogo, já o interrompemos e queremos replicar quando ele ainda
não acabou de falar. Não devemos perder a capacidade de escuta». São Francisco
de Assis «escutou a voz de Deus, escutou a voz dos pobres, escutou a voz do
enfermo, escutou a voz da natureza. E transformou tudo isso num estilo de vida.
Desejo que a semente de São Francisco cresça em tantos corações».[49]
49. Ao desaparecer o silêncio e a escuta, transformando tudo em
cliques e mensagens rápidas e ansiosas, coloca-se em perigo esta estrutura
básica duma comunicação humana sábia. Cria-se um novo estilo de vida, no qual
cada um constrói o que deseja ter à sua frente, excluindo tudo aquilo que não
se pode controlar ou conhecer superficial e instantaneamente. Por sua lógica
intrínseca, esta dinâmica impede aquela reflexão serena que poderia levar-nos a
uma sabedoria comum.
50. Podemos buscar juntos a verdade no diálogo, na conversa
tranquila ou na discussão apaixonada. É um caminho perseverante, feito também
de silêncios e sofrimentos, capaz de recolher pacientemente a vasta experiência
das pessoas e dos povos. A acumulação esmagadora de informações que nos
inundam, não significa maior sabedoria. A sabedoria não se fabrica com buscas
impacientes na internet, nem é um somatório de informações cuja veracidade não
está garantida. Desta forma, não se amadurece no encontro com a verdade. As
conversas giram, em última análise, ao redor das notícias mais recentes; são
meramente horizontais e cumulativas. Mas, não se presta uma atenção prolongada
e penetrante ao coração da vida, nem se reconhece o que é essencial para dar um
sentido à existência. Assim, a liberdade transforma-se numa ilusão que nos
vendem, confundindo-se com a liberdade de navegar frente a um visor. O problema
é que um caminho de fraternidade, local e universal, só pode ser percorrido por
espíritos livres e dispostos a encontros reais.
Sujeições e
autodepreciação
51. Alguns países economicamente bem-sucedidos são apresentados como
modelos culturais para os países pouco desenvolvidos, em vez de procurar que
cada um cresça com o seu estilo peculiar, desenvolvendo as suas capacidades de
inovar a partir dos valores da sua própria cultura. Esta nostalgia superficial
e triste, que induz a copiar e comprar em vez de criar, gera uma baixa autoestima
nacional. Nos setores acomodados de muitos países pobres e às vezes naqueles
que conseguiram sair da pobreza, nota-se a incapacidade de aceitar
caraterísticas e processos próprios, caindo num desprezo da própria identidade
cultural como se fosse a causa de todos os seus males.
52. Uma maneira fácil de dominar alguém é destruir-lhe a autoestima.
Por detrás destas tendências que visam uniformizar o mundo, afloram interesses
de poder que se aproveitam da baixa autoestima, ao mesmo tempo que, através
dos media e das redes, procuram criar uma nova cultura ao
serviço dos mais poderosos. Disto tiram vantagem o oportunismo da especulação
financeira e a exploração, onde aqueles que sempre ficam a perder são os
pobres. Por outro lado, ignorar a cultura dum povo faz com que muitos líderes
políticos não sejam capazes de promover um projeto eficaz que possa ser
livremente assumido e sustentado ao longo do tempo.
53. Esquece-se de que «não há alienação pior do que experimentar que
não se tem raízes, não se pertence a ninguém. Uma terra será fecunda, um povo
dará frutos e será capaz de gerar o amanhã apenas na medida em que dá vida a
relações de pertença entre os seus membros, na medida em que cria laços de
integração entre as gerações e as diferentes comunidades que o compõem, e ainda
na medida em que quebra as espirais que obscurecem os sentidos, afastando-nos
sempre uns dos outros».[50]
Esperança
54. Apesar destas sombras densas que não se devem ignorar, nas
próximas páginas desejo dar voz a tantos percursos de esperança. Com efeito,
Deus continua a espalhar sementes de bem na humanidade. A recente pandemia
permitiu-nos recuperar e valorizar tantos companheiros e companheiras de viagem
que, no medo, reagiram dando a própria vida. Fomos capazes de reconhecer como
as nossas vidas são tecidas e sustentadas por pessoas comuns que, sem dúvida,
escreveram os acontecimentos decisivos da nossa história compartilhada:
médicos, enfermeiros e enfermeiras, farmacêuticos, empregados dos
supermercados, pessoal de limpeza, cuidadores, transportadores, homens e
mulheres que trabalham para fornecer serviços essenciais e de segurança, voluntários,
sacerdotes, religiosas... compreenderam que ninguém se salva sozinho.[51]
55. Convido à esperança que «nos fala duma realidade que está
enraizada no mais fundo do ser humano, independentemente das circunstâncias
concretas e dos condicionamentos históricos em que vive. Fala-nos duma sede,
duma aspiração, dum anseio de plenitude, de vida bem-sucedida, de querer
agarrar o que é grande, o que enche o coração e eleva o espírito para coisas
grandes, como a verdade, a bondade e a beleza, a justiça e o amor. (…) A
esperança é ousada, sabe olhar para além das comodidades pessoais, das pequenas
seguranças e compensações que reduzem o horizonte, para se abrir aos grandes
ideais que tornam a vida mais bela e digna».[52] Caminhemos
na esperança!
Capítulo II
UM ESTRANHO NO CAMINHO
56. Tudo o que mencionei no capítulo anterior é mais do que uma
asséptica descrição da realidade, pois «as alegrias e as esperanças, as
tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos
aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as
angústias dos discípulos de Cristo; e não há realidade alguma verdadeiramente
humana que não encontre eco no seu coração».[53] Com
a intenção de procurar uma luz no meio do que estamos a viver e antes de propor
algumas linhas de ação, quero dedicar um capítulo a uma parábola narrada por
Jesus Cristo há dois mil anos. Com efeito, apesar desta encíclica se dirigir a
todas as pessoas de boa vontade, independentemente das suas convicções
religiosas, a parábola em questão é expressa de tal maneira que qualquer um de
nós pode deixar-se interpelar por ela:
«Levantou-se, então, um
doutor da Lei e perguntou [a Jesus], para O experimentar: “Mestre, que hei de
fazer para possuir a vida eterna?” Disse-lhe Jesus: “Que está escrito na Lei?
Como lês?” O outro respondeu: “Amarás ao Senhor, teu Deus, com todo o teu
coração, com toda a tua alma, com todas as tuas forças e com todo o teu
entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo”. Disse-lhe Jesus: “Respondeste
bem; faz isso e viverás”. Mas ele, querendo justificar a pergunta feita, disse
a Jesus: “E quem é o meu próximo?” Tomando a palavra, Jesus respondeu: “Certo
homem descia de Jerusalém para Jericó e caiu nas mãos dos salteadores que,
depois de o despojarem e encherem de pancadas, o abandonaram, deixando-o meio
morto. Por coincidência, descia por aquele caminho um sacerdote que, ao vê-lo,
passou ao largo. Do mesmo modo, também um levita passou por aquele lugar e, ao
vê-lo, passou adiante. Mas um samaritano, que ia de viagem, chegou ao pé dele
e, vendo-o, encheu-se de compaixão. Aproximou-se, ligou-lhe as feridas,
deitando nelas azeite e vinho, colocou-o sobre a sua própria montada, levou-o
para uma estalagem e cuidou dele. No dia seguinte, tirando dois denários,
deu-os ao estalajadeiro, dizendo: ‘Trata bem dele e, o que gastares a mais,
pagar-to-ei quando voltar’. Qual destes três te parece ter sido o próximo
daquele homem que caiu nas mãos dos salteadores?” Respondeu: “O que usou de
misericórdia para com ele”. Jesus retorquiu: “Vai e faz tu também o mesmo”» (Lc 10,
25-37).
A perspetiva de fundo
57. Esta parábola recolhe uma perspetiva de séculos. Pouco depois da
narração da criação do mundo e do ser humano, a Bíblia propõe o desafio das
relações entre nós. Caim elimina o seu irmão Abel, e ressoa a pergunta de Deus:
«Onde está Abel, teu irmão?» A resposta é a mesma que damos nós muitas vezes:
«Sou, porventura, guarda do meu irmão?» (Gn 4, 9). Com a sua
pergunta, Deus coloca em questão todo o tipo de determinismo ou fatalismo que
pretenda justificar como única resposta possível a indiferença. E, ao invés,
habilita-nos a criar uma cultura diferente, que nos conduza a superar as
inimizades e cuidar uns dos outros.
58. O livro de Job invoca o facto de ter um mesmo Criador como base
para sustentar alguns direitos em comum: «Pois Aquele que me criou no ventre,
também o criou a ele; um só nos formou a ambos no seio materno» (31, 15).
Muitos séculos depois, Santo Ireneu de Lião expressará o mesmo conceito
recorrendo à imagem da melodia: «Assim, quem ama a verdade não deve deixar-se enganar
pela diferença entre cada um dos sons, nem imaginar que um músico seja o
artífice e o criador deste som, e outro o artífice e o criador do outro (…),
mas há de pensar que um único músico os produziu a ambos».[54]
59. Nas tradições judaicas, o dever de amar o outro e cuidar dele
parecia limitar-se às relações entre os membros duma mesma nação. O antigo
preceito «amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19, 18)
geralmente entendia-se como referido aos compatriotas. Todavia, especialmente
no judaísmo que se desenvolveu fora da terra de Israel, as fronteiras foram-se
ampliando. Aparece o convite a não fazer aos outros o que não queres que te
façam a ti (cf. Tob 4, 15). E a propósito dizia, no século I
(a.C.), o sábio Hillel: «Isto é a Lei e os Profetas. Todo o resto é
comentário».[55] O
desejo de imitar o comportamento divino levou a superar aquela tendência de
limitar o amor aos mais próximos: «A compaixão do homem tem por objeto o
próximo, mas a misericórdia divina estende-se a todo o ser vivo» (Sir 18,
13).
60. O preceito de Hillel recebeu uma formulação positiva no Novo
Testamento: «O que quiserdes que vos façam os homens, fazei-o também a eles,
porque isto é a Lei e os Profetas» (Mt 7, 12). Este apelo é
universal, tende a abraçar a todos, apenas pela sua condição humana, porque o
Altíssimo, o Pai do Céu, «faz com que o Sol se levante sobre os bons e os maus»
(Mt 5, 45). Em consequência, exige-se: «Sede misericordiosos como o
vosso Pai é misericordioso» (Lc 6, 36).
61. Como motivo para alargar o coração a fim de não excluir o
estrangeiro, invoca-se a memória que o povo judeu conserva de ter vivido como
estrangeiro no Egito. E tal motivo aparece já nos textos mais antigos da
Bíblia: «Não usarás de violência contra o estrangeiro residente nem o
oprimirás, porque foste estrangeiro residente na terra do Egito» (Ex 22,
20). «Não oprimirás um estrangeiro residente; vós conheceis a vida do
estrangeiro residente, porque fostes estrangeiros residentes na terra do Egito»
(Ex 23, 9). «Se um estrangeiro vier residir contigo na tua terra,
não o oprimirás. O estrangeiro que reside convosco será tratado como um dos
vossos compatriotas e amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes estrangeiros na
terra do Egito» (Lv 19, 33-34). «Quando vindimares a tua vinha, não
rebusques o que ficou; deixa-o para o estrangeiro, o órfão e a viúva. Lembra-te
que foste escravo na terra do Egito» (Dt 24, 21-22).
No Novo Testamento,
ressoa intensamente o apelo ao amor fraterno: «Toda a Lei se cumpre plenamente
nesta única palavra: ama o teu próximo como a ti mesmo» (Gl 5, 14).
«Quem ama o seu irmão permanece na luz e não corre perigo de tropeçar. Mas quem
tem ódio ao seu irmão está nas trevas» (1 Jo 2, 10-11). «Nós
sabemos que passamos da morte para a vida, porque amamos os irmãos. Quem não
ama, permanece na morte» (1 Jo 3, 14). «Aquele que não ama o seu
irmão, a quem vê, não pode amar a Deus, a quem não vê» (1 Jo 4,
20).
62. Mesmo esta proposta de amor podia ser mal compreendida. Foi por
alguma razão que, perante a tentação das primeiras comunidades cristãs criarem
grupos fechados e isolados, São Paulo exortava os seus discípulos a ter
caridade uns para com os outros «e para com todos» (1 Ts 3, 12) e,
na comunidade de João, pedia-se que fossem bem recebidos os irmãos, «mesmo
sendo estrangeiros» (3 Jo 5). Esse contexto ajuda a entender o
valor da parábola do bom samaritano: ao amor não lhe interessa se o irmão
ferido vem daqui ou dacolá. Com efeito, é o «amor que rompe as cadeias que nos
isolam e separam, lançando pontes; amor que nos permite construir uma grande
família onde todos nos podemos sentir em casa (…). Amor que sabe de compaixão e
dignidade».[56]
O abandonado
63. Conta Jesus que havia um homem ferido, estendido por terra no
caminho, que fora assaltado. Passaram vários ao seu lado, mas… foram-se, não
pararam. Eram pessoas com funções importantes na sociedade, que não tinham no
coração o amor pelo bem comum. Não foram capazes de perder uns minutos para
cuidar do ferido ou, pelo menos, procurar ajuda. Um parou, ofereceu-lhe
proximidade, curou-o com as próprias mãos, pôs também dinheiro do seu bolso e
ocupou-se dele. Sobretudo deu-lhe algo que, neste mundo apressado, regateamos
tanto: deu-lhe o seu tempo. Tinha certamente os seus planos para aproveitar
aquele dia a bem das suas necessidades, compromissos ou desejos. Mas conseguiu
deixar tudo de lado à vista do ferido e, sem o conhecer, considerou-o digno de
lhe dedicar o seu tempo.
64. Com quem te identificas? É uma pergunta sem rodeios, direta e
determinante: a qual deles te assemelhas? Precisamos de reconhecer a tentação
que nos cerca de se desinteressar dos outros, especialmente dos mais frágeis.
Digamos que crescemos em muitos aspetos, mas somos analfabetos no acompanhar,
cuidar e sustentar os mais frágeis e vulneráveis das nossas sociedades
desenvolvidas. Habituamo-nos a olhar para o outro lado, passar à margem,
ignorar as situações até elas nos caírem diretamente em cima.
65. Assaltam uma pessoa na rua, e muitos fogem como se não tivessem
visto nada. Sucede muitas vezes que pessoas atropelam alguém com o seu carro e
fogem. Pensam só em evitar problemas; não importa se um ser humano morre por
sua culpa. Mas estes são sinais dum estilo de vida generalizado, que se
manifesta de várias maneiras, porventura mais subtis. Além disso, como estamos
todos muito concentrados nas nossas necessidades, ver alguém que está mal
incomoda-nos, perturba-nos, porque não queremos perder tempo por culpa dos
problemas alheios. São sintomas duma sociedade enferma, pois procura
construir-se de costas para o sofrimento.
66. É melhor não cair nesta miséria. Fixemos o modelo do bom
samaritano. É um texto que nos convida a fazer ressurgir a nossa vocação de
cidadãos do próprio país e do mundo inteiro, construtores dum novo vínculo
social. Embora esteja inscrito como lei fundamental do nosso ser, é um apelo
sempre novo: que a sociedade se oriente para a prossecução do bem comum e, a
partir deste objetivo, reconstrua incessantemente a sua ordem política e
social, o tecido das suas relações, o seu projeto humano. Com os seus gestos, o
bom samaritano fez ver que «a existência de cada um de nós está ligada à dos
outros: a vida não é tempo que passa, mas tempo de encontro».[57]
67. Esta parábola é um ícone iluminador, capaz de manifestar a opção
fundamental que precisamos de tomar para reconstruir este mundo que nos está a
peito. Diante de tanta dor, à vista de tantas feridas, a única via de saída é
ser como o bom samaritano. Qualquer outra opção deixa-nos ou com os salteadores
ou com os que passam ao largo, sem se compadecer com o sofrimento do ferido na
estrada. A parábola mostra-nos as iniciativas com que se pode refazer uma
comunidade a partir de homens e mulheres que assumem como própria a fragilidade
dos outros, não deixam constituir-se uma sociedade de exclusão, mas fazem-se
próximos, levantam e reabilitam o caído, para que o bem seja comum. Ao mesmo
tempo, a parábola adverte-nos sobre certas atitudes de pessoas que só olham para
si mesmas e não atendem às exigências ineludíveis da realidade humana.
68. A narração – digamo-lo claramente – não desenvolve uma doutrina
feita de ideais abstratos, nem se limita à funcionalidade duma moral
ético-social. Mas revela-nos uma caraterística essencial do ser humano,
frequentemente esquecida: fomos criados para a plenitude, que só se alcança no
amor. Viver indiferentes à dor não é uma opção possível; não podemos deixar
ninguém caído «nas margens da vida». Isto deve indignar-nos de tal maneira que
nos faça descer da nossa serenidade alterando-nos com o sofrimento humano. Isto
é dignidade.
Uma história que se
repete
69. A narração é simples e linear, mas contém toda a dinâmica da
luta interior que se verifica na elaboração da nossa identidade, que se
verifica em toda a existência projetada na realização da fraternidade humana.
Enquanto caminhamos, inevitavelmente embatemos no homem ferido. Hoje, há cada
vez mais feridos. A inclusão ou exclusão da pessoa que sofre na margem da
estrada define todos os projetos económicos, políticos, sociais e religiosos.
Dia a dia enfrentamos a opção de ser bons samaritanos ou viandantes
indiferentes que passam ao largo. E se estendermos o olhar à totalidade da
nossa história e ao mundo no seu conjunto, reconheceremos que todos somos, ou
fomos, como estas personagens: todos temos algo do ferido, do salteador,
daqueles que passam ao largo e do bom samaritano.
70. Digno de nota é o facto de as diferenças entre as personagens na
parábola ficarem completamente transformadas ao confrontar-se com a dolorosa
aparição do caído, do humilhado. Já não há distinção entre habitante da Judeia
e habitante da Samaria, não há sacerdote nem comerciante; existem simplesmente
dois tipos de pessoas: aquelas que cuidam do sofrimento e aquelas que passam ao
largo; aquelas que se debruçam sobre o caído e o reconhecem necessitado de
ajuda e aquelas que olham distraídas e aceleram o passo. De facto, caem as
nossas múltiplas máscaras, os nossos rótulos e os nossos disfarces: é a hora da
verdade. Debruçar-nos-emos para tocar e cuidar das feridas dos outros?
Abaixar-nos-emos para levar às costas o outro? Este é o desafio atual, de que
não devemos ter medo. Nos momentos de crise, a opção torna-se premente:
poderíamos dizer que, neste momento, quem não é salteador e quem não passa ao
largo, ou está ferido ou carrega aos ombros algum ferido.
71. A história do bom samaritano repete-se: torna-se cada vez mais
evidente que a incúria social e política faz de muitos lugares do mundo
estradas desoladas, onde as disputas internas e internacionais e o saque de
oportunidades deixam tantos marginalizados, atirados para a margem da estrada.
Na sua parábola, Jesus não propõe vias alternativas, como, por exemplo, no caso
daquele homem ferido ou de quem o ajudou terem dado espaço nos seus corações ao
ódio ou à sede de vingança, que sucederia? Jesus não Se detém nisso. Confia na
parte melhor do espírito humano e, com a parábola, anima-o a aderir ao amor,
reintegrar o ferido e construir uma sociedade digna de tal nome.
As personagens
72. A parábola começa com os salteadores. O ponto de partida
escolhido por Jesus é um assalto já consumado. Não nos faz deter na lamentação
do facto, nem dirige o nosso olhar para os salteadores. São coisas do nosso
conhecimento. Vimos avançar no mundo as sombras densas do abandono, da
violência usada para mesquinhos interesses de poder, acúmulo e repartição. A
questão poderia ser: deixaremos ali estirado por terra o homem maltratado para
correr cada qual a esconder-se da violência ou a perseguir os ladrões? Será o
ferido a justificação das nossas divisões irreconciliáveis, das nossas cruéis
indiferenças, dos nossos confrontos internos?
73. De imediato a parábola faz-nos pousar o olhar claramente
naqueles que passam ao largo. Esta perigosa indiferença que leva a não parar,
inocente ou não, fruto do desprezo ou duma triste distração, faz das duas
personagens – o sacerdote e o levita – um reflexo não menos triste daquela
distância menosprezadora que te isola da realidade. Há muitas maneiras de passar
ao largo, que são complementares: uma é ensimesmar-se, desinteressar-se dos
outros, ficar indiferente; outra seria olhar só para fora. Relativamente a esta
última maneira de passar ao largo, nalguns países ou em certos setores deles,
verifica-se um desprezo dos pobres e da sua cultura, bem como um viver com o
olhar voltado para fora, como se um projeto de país importado procurasse ocupar
o seu lugar. Assim se pode justificar a indiferença de alguns, pois aqueles que
poderiam tocar os seus corações com as suas reivindicações simplesmente não
existem; estão fora do seu horizonte de interesses.
74. Nas pessoas que passam ao largo, há um detalhe que não podemos
ignorar: eram pessoas religiosas. Mais ainda, dedicavam-se a dar culto a Deus:
um sacerdote e um levita. Isto é uma forte chamada de atenção: indica que o
facto de crer em Deus e O adorar não é garantia de viver como agrada a Deus.
Uma pessoa de fé pode não ser fiel a tudo o que essa mesma fé exige dela e, no
entanto, sentir-se perto de Deus e julgar-se com mais dignidade do que os
outros. Mas há maneiras de viver a fé que facilitam a abertura do coração aos
irmãos, e esta será a garantia duma autêntica abertura a Deus. São João
Crisóstomo expressou, com muita clareza, este desafio que se apresenta aos cristãos:
«Queres honrar o Corpo de Cristo? Não permitas que seja desprezado nos seus
membros, isto é, nos pobres que não têm que vestir, nem O honres aqui no templo
com vestes de seda, enquanto lá fora O abandonas ao frio e à nudez».[58] O
paradoxo é que, às vezes, quantos dizem que não acreditam podem viver melhor a
vontade de Deus do que os crentes.
75. Habitualmente os «salteadores do caminho» têm, como aliados
secretos, aqueles que «passam pelo caminho olhando para o outro lado». O
círculo encerra-se entre aqueles que usam e enganam a sociedade para chupá-la,
e aqueles que julgam manter a pureza na sua função crítica, mas ao mesmo tempo
vivem desse sistema e seus recursos. Verifica-se uma triste hipocrisia, quando
a impunidade do delito, o uso das instituições para interesses pessoais ou
corporativos e outros males que não conseguimos banir, se associam a uma
desqualificação permanente de tudo, à constante sementeira de suspeitas que
gera desconfiança e perplexidade. Ao engano de que «tudo está mal» corresponde
o dito «ninguém o pode consertar. Sendo assim, que posso fazer eu?» Deste modo,
alimenta-se o desencanto e a falta de esperança; e isto não estimula um
espírito de solidariedade e generosidade. Fazer um povo precipitar no desânimo
é o epílogo dum perfeito círculo vicioso: assim procede a ditadura invisível
dos verdadeiros interesses ocultos, que se apoderaram dos recursos e da
capacidade de ter opinião e pensamento próprios.
76. Olhemos enfim o ferido. Às vezes sentimo-nos como ele,
gravemente feridos e atirados para a margem da estrada. Sentimo-nos também
abandonados pelas nossas instituições desguarnecidas e carentes, ou voltadas
para servir os interesses de poucos, fora e dentro. Com efeito, «na sociedade
globalizada, existe um estilo elegante de olhar para o outro lado, que se
pratica de maneira recorrente: sob as aparências do politicamente correto ou
das modas ideológicas, olhamos para aquele que sofre mas não o tocamos,
transmitimo-lo ao vivo e até proferimos um discurso aparentemente tolerante e
cheio de eufemismos».[59]
Recomeçar
77. Cada dia é-nos oferecida uma nova oportunidade, uma etapa nova.
Não devemos esperar tudo daqueles que nos governam; seria infantil. Gozamos dum
espaço de corresponsabilidade capaz de iniciar e gerar novos processos e
transformações. Sejamos parte ativa na reabilitação e apoio das sociedades
feridas. Hoje temos à nossa frente a grande ocasião de expressar o nosso ser
irmãos, de ser outros bons samaritanos que tomam sobre si a dor dos fracassos,
em vez de fomentar ódios e ressentimentos. Como o viandante ocasional da nossa
história, é preciso apenas o desejo gratuito, puro e simples de ser povo, de
ser constantes e incansáveis no compromisso de incluir, integrar, levantar quem
está caído; embora muitas vezes nos vejamos imersos e condenados a repetir a
lógica dos violentos, de quantos nutrem ambições só para si mesmos, espalhando
confusão e mentira. Deixemos que outros continuem a pensar na política ou na
economia para os seus jogos de poder. Alimentemos o que é bom, e coloquemo-nos
ao serviço do bem.
78. É possível começar por baixo e caso a caso, lutar pelo mais
concreto e local, até ao último ângulo da pátria e do mundo, com o mesmo
cuidado que o viandante da Samaria teve por cada chaga do ferido. Procuremos os
outros e ocupemo-nos da realidade que nos compete, sem temer a dor nem a
impotência, porque naquela está todo o bem que Deus semeou no coração do ser
humano. As dificuldades que parecem enormes são a oportunidade para crescer, e
não a desculpa para a tristeza inerte que favorece a sujeição. Mas não o
façamos sozinhos, individualmente. O samaritano procurou um estalajadeiro que
pudesse cuidar daquele homem, como nós estamos chamados a convidar outros e a
encontrar-nos num «nós» mais forte do que a soma de pequenas individualidades;
lembremo-nos de que «o todo é mais do que a parte, sendo também mais do que a
simples soma delas».[60] Renunciemos
à mesquinhez e ao ressentimento de particularismos estéreis, de contraposições
sem fim. Deixemos de ocultar a dor das perdas e assumamos os nossos delitos,
desmazelos e mentiras. A reconciliação reparadora ressuscitar-nos-á, fazendo
perder o medo a nós mesmos e aos outros.
79. O samaritano do caminho partiu sem esperar reconhecimentos nem
obrigados. A dedicação ao serviço era a grande satisfação diante do seu Deus e
na própria vida e, consequentemente, um dever. Todos temos uma responsabilidade
pelo ferido que é o nosso povo e todos os povos da terra. Cuidemos da
fragilidade de cada homem, cada mulher, cada criança e cada idoso, com a mesma
atitude solidária e solícita, a mesma atitude de proximidade do bom samaritano.
O próximo sem fronteiras
80. Jesus propôs esta parábola para responder a uma pergunta: «Quem
é o meu próximo?» (Lc 10, 29). A palavra «próximo» na sociedade do
tempo de Jesus costumava indicar a pessoa que está mais vizinha, mais próxima.
Pensava-se que a ajuda devia encaminhar-se em primeiro lugar para aqueles que
pertencem ao próprio grupo, à própria raça. Para alguns judeus de então, um
samaritano era considerado um ser desprezível, impuro, e, por conseguinte, não
estava incluído entre o próximo a quem se deveria ajudar. O judeu Jesus
transforma completamente esta impostação: não nos convida a interrogar-nos quem
é vizinho a nós, mas a tornar-nos nós mesmos vizinhos, próximos.
81. A proposta é fazer-se presente a quem precisa de ajuda,
independentemente de fazer parte ou não do próprio círculo de pertença. Neste
caso, o samaritano foi quem se fez próximo do judeu ferido.
Para se tornar próximo e presente, ultrapassou todas as barreiras culturais e
históricas. A conclusão de Jesus é um pedido: «Vai e faz tu também o mesmo» (Lc 10,
37). Por outras palavras, desafia-nos a deixar de lado toda a diferença e, em
presença do sofrimento, fazer-nos vizinhos a quem quer que seja. Assim, já não
digo que tenho «próximos» a quem devo ajudar, mas que me sinto chamado a
tornar-me eu um próximo dos outros.
82. O problema é que Jesus destaca explicitamente que o homem ferido
era um judeu – habitante da Judeia –, enquanto aquele que se deteve e o ajudou
era um samaritano – habitante da Samaria –. Este detalhe reveste-se duma
importância excecional ao refletirmos sobre um amor que se abre a todos. Os
samaritanos habitavam numa região que fora contagiada por ritos pagãos, o que –
aos olhos dos judeus – os tornava impuros, detestáveis, perigosos. De facto, um
antigo texto hebraico, que menciona as nações odiadas, refere-se à Samaria
afirmando até que «nem sequer é um povo», e acrescenta que é «o povo insensato
que habita em Siquém» (Sir 50, 25.26).
83. Isto explica por que uma mulher samaritana, quando Jesus lhe
pediu de beber, tenha observado: «Como é que Tu, sendo judeu, me pedes de beber
a mim que sou samaritana?» (Jo 4, 9). E noutra ocasião, ao procurar
acusações que pudessem desacreditar Jesus, a coisa mais ofensiva que
encontraram foi dizer-Lhe: «tens um demónio» e «és um samaritano» (Jo 8,
48). Portanto, este encontro misericordioso entre um samaritano e um judeu é
uma forte provocação, que desmente toda a manipulação ideológica,
desafiando-nos a ampliar o nosso círculo, a dar à nossa capacidade de amar uma
dimensão universal capaz de ultrapassar todos os preconceitos, todas as
barreiras históricas ou culturais, todos os interesses mesquinhos.
A provocação do
forasteiro
84. Por fim, lembro que Jesus diz noutra parte do Evangelho: «Era
forasteiro e recolheste-me» (Mt 25, 35). Jesus podia dizer estas
palavras, porque tinha um coração aberto que assumia os dramas dos outros. São
Paulo exortava: «Alegrai-vos com os que se alegram, chorai com os que choram» (Rm 12,
15). Quando o coração assume esta atitude, é capaz de se identificar com o
outro sem se importar com o lugar onde nasceu nem donde vem. Entrando nesta
dinâmica, em última análise, experimenta que os outros são «a sua carne» (Is 58,
7).
85. Para os cristãos, as palavras de Jesus têm ainda outra dimensão,
transcendente. Implicam reconhecer o próprio Cristo em cada irmão abandonado ou
excluído (cf. Mt 25, 40.45). Na realidade, a fé cumula de
motivações inauditas o reconhecimento do outro, pois quem acredita pode chegar
a reconhecer que Deus ama cada ser humano com um amor infinito e que «assim lhe
confere uma dignidade infinita».[61] Além
disso, acreditamos que Cristo derramou o seu sangue por todos e cada um, pelo
que ninguém fica fora do seu amor universal. E, se formos à fonte suprema que é
a vida íntima de Deus, encontramo-nos com uma comunidade de três Pessoas,
origem e modelo perfeito de toda a vida em comum. A teologia continua a
enriquecer-se graças à reflexão sobre esta grande verdade.
86. Às vezes deixa-me triste o facto de, apesar de estar dotada de
tais motivações, a Igreja ter demorado tanto tempo a condenar energicamente a escravatura
e várias formas de violência. Hoje, com o desenvolvimento da espiritualidade e
da teologia, não temos desculpas. Todavia, ainda há aqueles que parecem
sentir-se encorajados ou pelo menos autorizados pela sua fé a defender várias
formas de nacionalismo fechado e violento, atitudes xenófobas, desprezo e até
maus-tratos àqueles que são diferentes. A fé, com o humanismo que inspira, deve
manter vivo um sentido crítico perante estas tendências e ajudar a reagir
rapidamente quando começam a insinuar-se. Para isso, é importante que a
catequese e a pregação incluam, de forma mais direta e clara, o sentido social
da existência, a dimensão fraterna da espiritualidade, a convicção sobre a
dignidade inalienável de cada pessoa e as motivações para amar e acolher a
todos.
Capítulo III
PENSAR E GERAR UM MUNDO ABERTO
87. O ser humano está feito de tal maneira que não se realiza, não
se desenvolve, nem pode encontrar a sua plenitude «a não ser no sincero dom de
si mesmo»[62] aos
outros. E não chega a reconhecer completamente a sua própria verdade, senão no
encontro com os outros: «Só comunico realmente comigo mesmo, na medida em que
comunico com o outro».[63] Isso
explica por que ninguém pode experimentar o valor de viver, sem rostos
concretos a quem amar. Aqui está um segredo da existência humana autêntica, já
que «a vida subsiste onde há vínculo, comunhão, fraternidade; e é uma vida mais
forte do que a morte, quando se constrói sobre verdadeiras relações e vínculos
de fidelidade. Pelo contrário, não há vida quando se tem a pretensão de
pertencer apenas a si mesmo e de viver como ilhas: nestas atitudes prevalece a
morte».[64]
Mais além
88. A partir da intimidade de cada coração, o amor cria vínculos e
amplia a existência, quando arranca a pessoa de si mesma para o outro.[65] Feitos
para o amor, existe em cada um de nós «uma espécie de lei de “êxtase”: sair de
si mesmo para encontrar nos outros um acrescentamento de ser».[66] Por
isso, «o homem deve conseguir um dia partir de si mesmo, deixar de procurar
apoio em si mesmo, deixar-se levar».[67]
89. Mas não posso reduzir a minha vida à relação com um pequeno
grupo, nem mesmo à minha própria família, porque é impossível compreender-me a
mim mesmo sem uma teia mais ampla de relações: e não só as do momento atual,
mas também as relações dos anos anteriores que me foram configurando ao longo
da minha vida. A minha relação com uma pessoa, que estimo, não pode ignorar que
esta pessoa não vive só para a sua relação comigo, nem eu vivo apenas
relacionando-me com ela. A nossa relação, se é sadia e autêntica, abre-nos aos
outros que nos fazem crescer e enriquecem. O mais nobre sentido social hoje
facilmente fica anulado sob intimismos egoístas com aparência de relações
intensas. Pelo contrário, o amor autêntico, que ajuda a crescer, e as formas
mais nobres de amizade habitam em corações que se deixam completar. O vínculo
de casal e de amizade está orientado para abrir o coração em redor, para nos
tornar capazes de sair de nós mesmos até acolher a todos. Os grupos fechados e
os casais autorreferenciais, que se constituem como um «nós» contraposto ao
mundo inteiro, habitualmente são formas idealizadas de egoísmo e mera
autoproteção.
90. Não é sem razão que muitas populações pequenas e sobrevivendo em
áreas desérticas conseguiram desenvolver uma generosa capacidade de acolhimento
dos peregrinos que passavam, dando assim um sinal exemplar do dever sagrado da
hospitalidade. Viveram-no também as comunidades monásticas medievais, como se
verifica na Regra de São Bento. Embora pudessem perturbar a
ordem e o silêncio dos mosteiros, Bento exigia que se tratasse os pobres e os
peregrinos «com toda a consideração e carinho possíveis».[68] A
hospitalidade é uma maneira concreta de não se privar deste desafio e deste dom
que é o encontro com a humanidade mais além do próprio grupo. Aquelas pessoas
reconheciam que todos os valores por elas cultivados deviam ser acompanhados
por esta capacidade de se transcender a si mesmas numa abertura aos outros.
O valor único do amor
91. As pessoas podem desenvolver algumas atitudes que apresentam
como valores morais: fortaleza, sobriedade, laboriosidade e outras virtudes.
Mas, para orientar adequadamente os atos das várias virtudes morais, é
necessário considerar também a medida em que eles realizam um dinamismo de
abertura e união para com outras pessoas. Este dinamismo é a caridade, que Deus
infunde. Caso contrário, talvez tenhamos só uma aparência de virtudes, que
serão incapazes de construir a vida em comum. Por isso, dizia São Tomás de
Aquino – citando Santo Agostinho – que a temperança duma pessoa avarenta nem
sequer era virtuosa.[69] Com
outras palavras, explicava São Boaventura que as restantes virtudes, sem a
caridade, não cumprem estritamente os mandamentos «como Deus os compreende».[70]
92. A estatura espiritual duma vida humana é medida pelo amor, que
constitui «o critério para a decisão definitiva sobre o valor ou a inutilidade
duma vida humana».[71] Todavia
há crentes que pensam que a sua grandeza está na imposição das suas ideologias
aos outros, ou na defesa violenta da verdade, ou em grandes demonstrações de
força. Todos nós, crentes, devemos reconhecer isto: em primeiro lugar está o
amor, o amor nunca deve ser colocado em risco, o maior perigo é não amar
(cf. 1 Cor 13, 1-13).
93. Procurando especificar em que consiste a experiência de amar,
que Deus torna possível com a sua graça, São Tomás de Aquino explicava-a como
um movimento que centra a atenção no outro «considerando-o como um só comigo
mesmo».[72] A
atenção afetiva prestada ao outro provoca uma orientação que leva a procurar o
seu bem gratuitamente. Tudo isto parte duma estima, duma apreciação que, em última
análise, é o que está por detrás da palavra «caridade»: o ser amado é «caro»
para mim, ou seja, é estimado como de grande valor.[73] E
«do amor, pelo qual uma pessoa me agrada, depende que lhe dê
algo grátis».[74]
94. Sendo assim o amor implica algo mais do que uma série de ações
benéficas. As ações derivam duma união que propende cada vez mais para o outro,
considerando-o precioso, digno, aprazível e bom, independentemente das
aparências físicas ou morais. O amor ao outro por ser quem é, impele-nos a
procurar o melhor para a sua vida. Só cultivando esta forma de nos
relacionarmos é que tornaremos possível aquela amizade social que não exclui
ninguém e a fraternidade aberta a todos.
A progressiva abertura
do amor
95. Enfim, o amor coloca-nos em tensão para a comunhão universal.
Ninguém amadurece nem alcança a sua plenitude, isolando-se. Pela sua própria
dinâmica, o amor exige uma progressiva abertura, maior capacidade de acolher os
outros, numa aventura sem fim, que faz convergir todas as periferias rumo a um
sentido pleno de mútua pertença. Disse-nos Jesus: «Vós sois todos irmãos» (Mt 23,
8).
96. Esta necessidade de ir além dos próprios limites vale também
para as diferentes regiões e países. De facto, «o número sempre crescente de
ligações e comunicações que envolvem o nosso planeta torna mais palpável a
consciência da unidade e partilha dum destino comum entre as nações da terra.
Assim, nos dinamismos da história – independentemente da diversidade das etnias,
das sociedades e das culturas –, vemos semeada a vocação a formar uma
comunidade feita de irmãos que se acolhem mutuamente e cuidam uns dos outros».[75]
Sociedades abertas que
integram a todos
97. Existem periferias que estão próximas de nós, no centro duma
cidade ou na própria família. Também há um aspeto da abertura universal do amor
que não é geográfico, mas existencial: a capacidade diária de alargar o meu
círculo, chegar àqueles que espontaneamente não sinto como parte do meu mundo
de interesses, embora se encontrem perto de mim. Por outro lado, cada irmã ou
cada irmão que sofre, abandonado ou ignorado pela minha sociedade, é um
forasteiro existencial, embora tenha nascido no mesmo país. Pode ser um cidadão
com todos os documentos em ordem, mas fazem-no sentir como um estrangeiro na
sua própria terra. O racismo é um vírus que muda facilmente e, em vez de
desaparecer, dissimula-se mas está sempre à espreita.
98. Quero lembrar estes «exilados ocultos», que são tratados como
corpos estranhos à sociedade.[76] Muitas
pessoas com deficiência «sentem que vivem sem pertença nem participação». Ainda
há tanto «que as impede de beneficiar da plena cidadania». O objetivo não é
apenas cuidar delas, mas «acompanhá-las e “ungi-las” de dignidade para uma
participação ativa na comunidade civil e eclesial. Trata-se de um caminho
exigente e também cansativo, que contribuirá cada vez mais para a formação de
consciências capazes de reconhecer cada um como pessoa única e irrepetível».
Penso igualmente nos «idosos, que, inclusive por causa da sua deficiência, são
por vezes sentidos como um peso». Mas todos podem dar «uma contribuição
singular para o bem comum através de sua biografia original». Permiti que
insista: «Tende a coragem de dar voz àqueles que são discriminados por causa de
sua condição de deficiência, porque infelizmente, em certas nações, ainda hoje
é difícil reconhecê-los como pessoas de igual dignidade».[77]
Noções inadequadas dum
amor universal
99. O amor que se estende para além das fronteiras está na base
daquilo que chamamos «amizade social» em cada cidade ou em cada país. Se for
genuína, esta amizade social dentro duma sociedade é condição para possibilitar
uma verdadeira abertura universal. Não se trata daquele falso universalismo de
quem precisa de viajar constantemente, porque não suporta nem ama o próprio
povo. Quem olha para a sua gente com desprezo, estabelece na própria sociedade
categorias de primeira e segunda classe, de pessoas com mais ou menos dignidade
e direitos. Deste modo, nega que haja espaço para todos.
100. Também não estou a propor um universalismo autoritário e
abstrato, ditado ou planificado por alguns e apresentado como um presumível
ideal para homogeneizar, dominar e saquear. Há um modelo de globalização que
«visa conscientemente uma uniformidade unidimensional e procura eliminar todas
as diferenças e as tradições numa busca superficial de unidade. (...) Se uma
globalização pretende fazer a todos iguais, como se fosse uma esfera, tal
globalização destrói a riqueza e a singularidade de cada pessoa e de cada
povo».[78] Este
falso sonho universalista acaba por privar o mundo da variedade das suas cores,
da sua beleza e, em última análise, da sua humanidade. Com efeito, «o futuro
não é “monocromático”, mas – se tivermos coragem para isso – podemos
contemplá-lo na variedade e na diversidade das contribuições que cada um pode
dar. Como precisa a nossa família humana de aprender a viver conjuntamente em
harmonia e paz, sem necessidade de sermos todos iguais!»[79]
Superar um mundo de
sócios
101. Retomemos agora a parábola do bom samaritano que ainda tem muito
a propor-nos. Havia um homem ferido no caminho. As personagens que passavam ao
lado dele não se concentravam na chamada íntima a fazer-se próximos, mas na sua
função, na posição social que ocupavam, numa profissão prestigiosa na
sociedade. Sentiam-se importantes para a sociedade de então, e o que mais as
preocupava era o papel que deviam desempenhar. O homem ferido e abandonado no
caminho era um incómodo para este projeto, uma interrupção; e tratava-se de
alguém que, por sua vez, não ocupava função alguma. Era um «ninguém», não
pertencia a um grupo considerado notável, não tinha papel algum na construção
da história. Entretanto o generoso samaritano opunha-se a estas classificações
fechadas, embora ele mesmo estivesse fora de qualquer uma destas categorias,
sendo simplesmente um estranho sem um lugar próprio na sociedade. Assim, livre
de todas as etiquetas e estruturas, foi capaz de interromper a sua viagem,
mudar os seus programas, estar disponível para se abrir à surpresa do homem
ferido que precisava dele.
102. Que reação poderia provocar hoje essa narração, num mundo onde
constantemente aparecem e crescem grupos sociais, que se agarram a uma
identidade que os separa dos outros? Como pode aquela impressionar pessoas que
tendem a organizar-se de maneira a impedir qualquer presença estranha que possa
turbar tal identidade e esta organização autodefensiva e autorreferencial?
Neste esquema, fica excluída a possibilidade de fazer-se próximo, sendo possível
apenas ser próximo de quem me permite consolidar os benefícios pessoais. Assim
o termo «próximo» perde todo o significado, fazendo sentido apenas a palavra
«sócio», aquele que é associado para determinados interesses.[80]
Liberdade, igualdade e
fraternidade
103. A fraternidade não é resultado apenas de situações onde se
respeitam as liberdades individuais, nem mesmo da prática duma certa equidade.
Embora sejam condições que a tornam possível, não bastam para que surja como
resultado necessário a fraternidade. Esta tem algo de positivo a oferecer à
liberdade e à igualdade. Que sucede quando não há a fraternidade
conscientemente cultivada, quando não há uma vontade política de fraternidade,
traduzida numa educação para a fraternidade, o diálogo, a descoberta da
reciprocidade e enriquecimento mútuo como valores? Sucede que a liberdade se
atenua, predominando assim uma condição de solidão, de pura autonomia para
pertencer a alguém ou a alguma coisa, ou apenas para possuir e desfrutar. Isso
não esgota de maneira alguma a riqueza da liberdade, que se orienta sobretudo
para o amor.
104. Tampouco se alcança a igualdade definindo, abstratamente, que
«todos os seres humanos são iguais», mas resulta do cultivo consciente e
pedagógico da fraternidade. Aqueles que são capazes apenas de ser sócios, criam
mundos fechados. Em semelhante esquema, que sentido pode ter a pessoa que não
pertence ao círculo dos sócios e chega sonhando com uma vida melhor para si e
sua família?
105. O individualismo não nos torna mais livres, mais iguais, mais
irmãos. A mera soma dos interesses individuais não é capaz de gerar um mundo
melhor para toda a humanidade. Nem pode sequer preservar-nos de tantos males,
que se tornam cada vez mais globais. Mas o individualismo radical é o vírus
mais difícil de vencer. Ilude. Faz-nos crer que tudo se reduz a deixar à rédea
solta as próprias ambições, como se, acumulando ambições e seguranças
individuais, pudéssemos construir o bem comum.
Amor universal que
promove as pessoas
106. Para se caminhar rumo à amizade social e à fraternidade
universal, há que fazer um reconhecimento basilar e essencial: dar-se conta de
quanto vale um ser humano, de quanto vale uma pessoa, sempre e em qualquer
circunstância. Se cada um vale assim tanto, temos de dizer clara e firmemente
que «o simples facto de ter nascido num lugar com menores recursos ou menor
desenvolvimento não justifica que algumas pessoas vivam menos dignamente».[81] Trata-se
de um princípio elementar da vida social que é, habitualmente e de várias
maneiras, ignorado por quantos sentem que não convém à sua visão do mundo ou
não serve os seus objetivos.
107. Todo o ser humano tem direito de viver com dignidade e
desenvolver-se integralmente, e nenhum país lhe pode negar este direito
fundamental. Todos o possuem, mesmo quem é pouco eficiente porque nasceu ou
cresceu com limitações. De facto, isto não diminui a sua dignidade imensa de
pessoa humana, que se baseia, não nas circunstâncias, mas no valor do seu ser.
Quando não se salvaguarda este princípio elementar, não há futuro para a
fraternidade nem para a sobrevivência da humanidade.
108. Há sociedades que acolhem apenas parcialmente este princípio.
Aceitam que haja possibilidades para todos, mas, suposto isto, defendem que
tudo depende de cada um. Segundo esta perspetiva parcial, não teria sentido
«investir para que os lentos, fracos ou menos dotados possam também singrar na
vida».[82] Investir
a favor das pessoas frágeis pode não ser rentável, pode implicar menor
eficiência; requer um Estado presente e ativo e instituições da sociedade civil
que ultrapassem a liberdade dos mecanismos eficientistas de certos sistemas
económicos, políticos ou ideológicos, porque estão verdadeiramente orientados
em primeiro lugar para as pessoas e o bem comum.
109. Alguns nascem em famílias com boas condições económicas, recebem
boa educação, crescem bem alimentados, ou possuem por natureza notáveis
capacidades. Seguramente não precisarão dum Estado ativo, e apenas pedirão
liberdade. Mas, obviamente, não se aplica a mesma regra a uma pessoa com
deficiência, a alguém que nasceu num lar extremamente pobre, a alguém que
cresceu com uma educação de baixa qualidade e com reduzidas possibilidades para
cuidar adequadamente das suas enfermidades. Se a sociedade se reger
primariamente pelos critérios da liberdade de mercado e da eficiência, não há
lugar para tais pessoas, e a fraternidade não passará duma palavra romântica.
110. A verdade é que «a simples proclamação da liberdade económica,
enquanto as condições reais impedem que muitos possam efetivamente ter acesso a
ela (...), torna-se um discurso contraditório».[83] Palavras
como liberdade, democracia ou fraternidade esvaziam-se de sentido. Na
realidade, «enquanto o nosso sistema económico-social ainda produzir uma só
vítima que seja e enquanto houver uma pessoa descartada, não poderá haver a
festa da fraternidade universal».[84] Uma
sociedade humana e fraterna é capaz de preocupar-se por garantir, de modo
eficiente e estável, que todos sejam acompanhados no percurso da sua vida, não
apenas para assegurar as suas necessidades básicas, mas para que possam dar o
melhor de si mesmos, ainda que o seu rendimento não seja o melhor, mesmo que
sejam lentos, embora a sua eficiência não seja relevante.
111. A pessoa humana, com os seus direitos inalienáveis, está
naturalmente aberta a criar vínculos. Habita nela, radicalmente, o apelo a
transcender-se a si mesma no encontro com os outros. «É preciso, porém, ter
cuidado para não cair em alguns equívocos que podem surgir de um errado
conceito de direitos humanos e de um abuso paradoxal dos mesmos. De facto, há
hoje a tendência para uma reivindicação crescente de direitos individuais –
sinto-me tentado a dizer individualistas –, que esconde uma conceção de pessoa
humana separada de todo o contexto social e antropológico, quase como uma
«mónada» (monás) cada vez mais insensível (…). Na realidade, se o
direito de cada um não está harmoniosamente ordenado para o bem maior, acaba
por conceber-se sem limitações e, por conseguinte, tornar-se fonte de conflito
e violência».[85]
Promover o bem moral
112. Não podemos deixar
de afirmar que o desejo e a busca do bem dos outros e da humanidade inteira
implicam também procurar um desenvolvimento das pessoas e das sociedades nos
distintos valores morais que concorrem para um amadurecimento integral. No Novo
Testamento, menciona-se um fruto do Espírito Santo (cf. Gal 5,
22), expresso em grego pela palavra agathosyne. Indica o apego ao
bem, a busca do bem; mais ainda, é buscar aquilo que vale mais, o melhor para
os outros: o seu amadurecimento, o seu crescimento numa vida saudável, o
cultivo dos valores e não só o bem-estar material. No latim, há um termo
semelhante: bene-volentia, isto é, a atitude de querer o bem do
outro. É um forte desejo do bem, uma inclinação para tudo o que seja bom e
exímio, que impele a encher a vida dos outros com coisas belas, sublimes,
edificantes.
113. Nesta linha, com tristeza, volto a destacar que «vivemos já
muito tempo na degradação moral, baldando-nos à ética, à bondade, à fé, à
honestidade; chegou o momento de reconhecer que esta alegre superficialidade de
pouco nos serviu. Uma tal destruição de todo o fundamento da vida social acaba
por colocar-nos uns contra os outros na defesa dos próprios interesses».[86] Voltemos
a promover o bem, para nós mesmos e para toda a humanidade, e assim
caminharemos juntos para um crescimento genuíno e integral. Cada sociedade
precisa de garantir a transmissão dos valores; caso contrário, transmitem-se o
egoísmo, a violência, a corrupção nas suas diversas formas, a indiferença e, em
última análise, uma vida fechada a toda a transcendência e entrincheirada nos
interesses individuais.
O valor da solidariedade
114. Quero destacar a solidariedade, que «como virtude moral e
comportamento social, fruto da conversão pessoal, exige empenho por parte duma
multiplicidade de sujeitos que detêm responsabilidades de carácter educativo e
formativo. Penso em primeiro lugar nas famílias, chamadas a uma missão
educativa primária e imprescindível. Constituem o primeiro lugar onde se vivem
e transmitem os valores do amor e da fraternidade, da convivência e da
partilha, da atenção e do cuidado pelo outro. São também o espaço privilegiado
para a transmissão da fé, a começar por aqueles primeiros gestos simples de
devoção que as mães ensinam aos filhos. Quanto aos educadores e formadores que
têm a difícil tarefa de educar as crianças e os jovens, na escola ou nos vários
centros de agregação infantil e juvenil, devem estar cientes de que a sua
responsabilidade envolve as dimensões moral, espiritual e social da pessoa. Os
valores da liberdade, respeito mútuo e solidariedade podem ser transmitidos
desde a mais tenra idade. (…) Também os agentes culturais e dos meios de
comunicação social têm responsabilidades no campo da educação e da formação,
especialmente na sociedade atual onde se vai difundindo cada vez mais o acesso
a instrumentos de informação e comunicação».[87]
115. Nestes momentos em que tudo parece diluir-se e perder
consistência, faz-nos bem invocar a solidez,[88] que
deriva do facto de nos sabermos responsáveis pela fragilidade dos outros na
procura dum destino comum. A solidariedade manifesta-se concretamente no
serviço, que pode assumir formas muito variadas de cuidar dos outros. O serviço
é, «em grande parte, cuidar da fragilidade. Servir significa cuidar
dos frágeis das nossas famílias, da nossa sociedade, do nosso povo». Nesta
tarefa, cada um é capaz «de pôr de lado as suas exigências, expetativas,
desejos de omnipotência, à vista concreta dos mais frágeis (…). O serviço fixa
sempre o rosto do irmão, toca a sua carne, sente a sua proximidade e, em alguns
casos, até “padece” com ela e procura a promoção do irmão. Por isso, o serviço
nunca é ideológico, dado que não servimos ideias, mas pessoas».[89]
116. Os últimos, em geral, «praticam aquela solidariedade tão
especial que existe entre quantos sofrem, entre os pobres, e que a nossa
civilização parece ter esquecido, ou pelo menos tem grande vontade de esquecer.
Solidariedade é uma palavra que nem sempre agrada; diria que algumas vezes a transformamos
num palavrão, que não se pode dizer; mas é uma palavra que expressa muito mais
do que alguns gestos de generosidade esporádicos. É pensar e agir em termos de
comunidade, de prioridade da vida de todos sobre a apropriação dos bens por
parte de alguns. É também lutar contra as causas estruturais da pobreza, a
desigualdade, a falta de trabalho, a terra e a casa, a negação dos direitos
sociais e laborais. É fazer face aos efeitos destrutivos do império do dinheiro
(...). A solidariedade, entendida no seu sentido mais profundo, é uma forma de
fazer história e é isto que os movimentos populares fazem».[90]
117. Quando falamos em cuidar da casa comum, que é o planeta, fazemos
apelo àquele mínimo de consciência universal e de preocupação pelo cuidado
mútuo que ainda possa existir nas pessoas. De facto, se alguém tem água de
sobra mas poupa-a pensando na humanidade, é porque atingiu um nível moral que
lhe permite transcender-se a si mesmo e ao seu grupo de pertença. Isto é
maravilhosamente humano! Requer-se este mesmo comportamento para reconhecer os
direitos de todo o ser humano, incluindo os nascidos fora das nossas próprias
fronteiras.
Repropor a função social
da propriedade
118. O mundo existe para todos, porque todos nós, seres humanos,
nascemos nesta terra com a mesma dignidade. As diferenças de cor, religião,
capacidade, local de nascimento, lugar de residência e muitas outras não podem
antepor-se nem ser usadas para justificar privilégios de alguns em detrimento
dos direitos de todos. Por conseguinte, como comunidade, temos o dever de
garantir que cada pessoa viva com dignidade e disponha de adequadas
oportunidades para o seu desenvolvimento integral.
119. Nos primeiros séculos da fé cristã, vários sábios desenvolveram
um sentido universal na sua reflexão sobre o destino comum dos bens criados.[91] Isto
levou a pensar que, se alguém não tem o necessário para viver com dignidade, é
porque outrem se está a apropriar do que lhe é devido. São João Crisóstomo
resume isso, dizendo que, «não fazer os pobres participar dos próprios bens, é
roubar e tirar-lhes a vida; não são nossos, mas deles, os bens que
aferrolhamos».[92] E
São Gregório Magno di-lo assim: «Quando damos aos indigentes o que lhes é
necessário, não oferecemos o que é nosso; limitamo-nos a restituir o que lhes
pertence».[93]
120. Faço minhas e volto a propor a todos algumas palavras de São
João Paulo II, cuja veemência talvez tenha passado despercebida: «Deus deu a
terra a todo género humano, para que ela sustente todos os seus membros, sem
excluir nem privilegiar ninguém».[94] Nesta
linha, lembro que «a tradição cristã nunca reconheceu como absoluto ou
intocável o direito à propriedade privada, e salientou a função social de
qualquer forma de propriedade privada».[95] O
princípio do uso comum dos bens criados para todos é o «primeiro princípio de
toda a ordem ético-social»,[96] é
um direito natural, primordial e prioritário.[97] Todos
os outros direitos sobre os bens necessários para a realização integral das
pessoas, quaisquer que sejam eles incluindo o da propriedade privada, «não
devem – como afirmava São Paulo VI – impedir, mas, pelo contrário, facilitar a
sua realização».[98] O
direito à propriedade privada só pode ser considerado como um direito natural
secundário e derivado do princípio do destino universal dos bens criados, e
isto tem consequências muito concretas que se devem refletir no funcionamento
da sociedade. Mas acontece muitas vezes que os direitos secundários se
sobrepõem aos prioritários e primordiais, deixando-os sem relevância prática.
Direitos sem fronteiras
121. Por conseguinte, ninguém pode ser excluído; não importa onde
tenha nascido, e menos ainda contam os privilégios que outros possam ter porque
nasceram em lugares com maiores possibilidades. Os confins e as fronteiras dos
Estados não podem impedir que isto se cumpra. Assim, como é inaceitável que uma
pessoa tenha menos direitos pelo simples facto de ser mulher, de igual modo é
inaceitável que o local de nascimento ou de residência determine, de por si,
menores oportunidades de vida digna e de desenvolvimento.
122. O desenvolvimento não deve orientar-se para a acumulação sempre
maior de poucos, mas há de assegurar «os direitos humanos, pessoais e sociais,
económicos e políticos, incluindo os direitos das nações e dos povos».[99] O
direito de alguns à liberdade de empresa ou de mercado não pode estar acima dos
direitos dos povos e da dignidade dos pobres; nem acima do respeito pelo
ambiente, pois «quem possui uma parte é apenas para a administrar em benefício
de todos».[100]
123. É verdade que a atividade dos empresários «é uma nobre vocação,
orientada para produzir riqueza e melhorar o mundo para todos».[101] Deus
incita-nos, esperando que desenvolvamos as capacidades que Ele nos deu, bem
como as potencialidades de que encheu o universo. Nos seus desígnios, cada
homem é chamado a promover o seu próprio desenvolvimento,[102] e
isto inclui a implementação das capacidades económicas e tecnológicas para
fazer crescer os bens e aumentar a riqueza. Mas estas capacidades dos
empresários, que são um dom de Deus, deveriam em todo o caso orientar-se
claramente para o desenvolvimento das outras pessoas e a superação da miséria,
especialmente através da criação de oportunidades de trabalho diversificadas. A
par do direito de propriedade privada, sempre existe o princípio mais
importante e antecedente da subordinação de toda a propriedade privada ao
destino universal dos bens da terra e, consequentemente, o direito de todos ao
seu uso.[103]
Direitos dos povos
124. Hoje requer-se que a convicção do destino comum dos bens da
terra se aplique também aos países, aos seus territórios e aos seus recursos.
Se o olharmos não só a partir da legitimidade da propriedade privada e dos
direitos dos cidadãos duma determinada nação, mas também a partir do primeiro
princípio do destino comum dos bens, então podemos dizer que cada país é também
do estrangeiro, já que os bens dum território não devem ser negados a uma
pessoa necessitada que provenha doutro lugar. Pois, como ensinaram os bispos
dos Estados Unidos, há direitos fundamentais que «precedem qualquer sociedade,
porque derivam da dignidade concedida a cada pessoa enquanto criada por Deus».[104]
125. Isto supõe também outra maneira de compreender as relações e o
intercâmbio entre países. Se toda a pessoa possui uma dignidade inalienável, se
todo o ser humano é meu irmão ou minha irmã e se, na realidade, o mundo
pertence a todos, não importa se alguém nasceu aqui ou vive fora dos confins do
seu próprio país. Também a minha nação é corresponsável pelo seu desenvolvimento,
embora possa cumprir tal responsabilidade de várias maneiras: acolhendo-o
generosamente quando o requeira uma necessidade imperiosa, promovendo-o na sua
própria terra, não desfrutando nem esvaziando de recursos naturais a países
inteiros, e não favorecendo sistemas corruptos que impedem o desenvolvimento
digno dos povos. Isto que é válido para as nações, aplica-se às diferentes
regiões de cada país, entre as quais se verificam muitas vezes graves
desigualdades. Entretanto a incapacidade de reconhecer a igual dignidade humana
leva às vezes a que as regiões mais desenvolvidas dalguns países aspirem por
libertar-se do «fardo» das regiões mais pobres para aumentar ainda mais o seu
nível de consumo.
126. Falamos duma nova rede nas relações internacionais, porque não é
possível resolver os graves problemas do mundo, pensando apenas em termos de
mútua ajuda entre indivíduos ou pequenos grupos. Lembremo-nos que «a
desigualdade não afeta apenas os indivíduos mas países inteiros, e obriga a
pensar numa ética das relações internacionais».[105] E
a justiça exige reconhecer e respeitar não só os direitos individuais, mas
também os direitos sociais e os direitos dos povos.[106] Quanto
afirmamos implica que se assegure «o direito fundamental dos povos à
subsistência e ao progresso»,[107] que
às vezes é fortemente dificultado pela pressão resultante da dívida externa. Em
muitos casos, o pagamento da dívida não só não favorece o desenvolvimento, mas
limita-o e condiciona-o intensamente. Embora se mantenha o princípio de que
toda a dívida legitimamente contraída deve ser paga, a maneira de cumprir este
dever que muitos países pobres têm para com países ricos não deve levar a
comprometer a sua subsistência e crescimento.
127. Trata-se, sem dúvida, doutra lógica. Se não se fizer esforço
para entrar nesta lógica, as minhas palavras parecerão um devaneio. Mas, se se
aceita o grande princípio dos direitos que brotam do simples facto de possuir a
inalienável dignidade humana, é possível aceitar o desafio de sonhar e pensar
numa humanidade diferente. É possível desejar um planeta que garanta terra,
teto e trabalho para todos. Este é o verdadeiro caminho da paz, e não a
estratégia insensata e míope de semear medo e desconfiança perante ameaças
externas. Com efeito, a paz real e duradoura é possível só «a partir de uma
ética global de solidariedade e cooperação ao serviço de um futuro modelado
pela interdependência e a corresponsabilidade na família humana inteira».[108]
Capítulo IV
UM CORAÇÃO ABERTO AO MUNDO INTEIRO
128. Se esta afirmação – como seres humanos, somos irmãos e irmãs –
não ficar pela abstração mas se tornar verdade encarnada e concreta, coloca-nos
uma série de desafios que nos fazem mover, obrigam a assumir novas perspetivas
e produzir novas reações.
O limite das fronteiras
129. Quando o próximo é uma pessoa migrante, sobrevêm desafios
complexos.[109] O
ideal seria, sem dúvida, tornar desnecessárias as migrações e, para isso, o
caminho é criar reais possibilidades de viver e crescer com dignidade nos
países de origem, a fim de se poder encontrar lá as condições para o próprio
desenvolvimento integral. Mas, enquanto não houver sérios progressos nesta
linha, é nosso dever respeitar o direito que tem todo o ser humano de encontrar
um lugar onde possa não apenas satisfazer as necessidades básicas dele e da sua
família, mas também realizar-se plenamente como pessoa. Os nossos esforços a
favor das pessoas migrantes que chegam podem resumir-se em quatro verbos:
acolher, proteger, promover e integrar. Com efeito, «não se trata de impor do
alto programas assistenciais, mas de percorrer unidos um caminho através destas
quatro ações, para construir cidades e países que, mesmo conservando as
respetivas identidades culturais e religiosas, estejam abertos às diferenças e
saibam valorizá-las em nome da fraternidade humana».[110]
130. Isto implica algumas respostas indispensáveis, sobretudo em
benefício daqueles que fogem de graves crises humanitárias. Por exemplo,
incrementar e simplificar a concessão de vistos, adotar programas de patrocínio
privado e comunitário, abrir corredores humanitários para os refugiados mais
vulneráveis, oferecer um alojamento adequado e decente, garantir a segurança
pessoal e o acesso aos serviços essenciais, assegurar uma adequada assistência
consular, o direito de manter sempre consigo os documentos pessoais de
identidade, um acesso imparcial à justiça, a possibilidade de abrir contas
bancárias e a garantia do necessário para a subsistência vital, dar-lhes
liberdade de movimento e a possibilidade de trabalhar, proteger os menores e
assegurar-lhes o acesso regular à educação, prever programas de custódia temporária
ou acolhimento, garantir a liberdade religiosa, promover a sua inserção social,
favorecer a reunificação familiar e preparar as comunidades locais para os
processos de integração.[111]
131. Para aqueles que chegaram há bastante tempo e já fazem parte do
tecido social, é importante aplicar o conceito de cidadania, que
«se baseia na igualdade dos direitos e dos deveres, sob cuja sombra todos gozam
da justiça. Por isso, é necessário empenhar-se por estabelecer nas nossas
sociedades o conceito de cidadania plena e renunciar ao uso discriminatório do
termo minorias, que traz consigo as sementes de se sentir isolado e da
inferioridade; isto prepara o terreno para as hostilidades e a discórdia e
subtrai as conquistas e os direitos religiosos e civis de alguns cidadãos,
discriminando-os».[112]
132. Além das várias ações indispensáveis, os Estados não podem
incrementar, por conta própria, soluções adequadas, «porque as consequências
das opções de cada um recaem inevitavelmente sobre toda a comunidade
internacional». Assim, «as respostas só poderão ser fruto dum trabalho comum»,[113] gerando
uma legislação (governance) global para as migrações. Em todo o
caso, há necessidade de «estabelecer projetos de médio e longo prazo que
ultrapassem a resposta de emergência; deveriam ajudar realmente à integração
dos migrantes nos países de acolhimento e, ao mesmo tempo, favorecer o
desenvolvimento dos países de origem com políticas solidárias, mas sem
condicionar as ajudas a estratégias e práticas ideologicamente alheias ou
contrárias às culturas dos povos a que se destinam».[114]
Os dons recíprocos
133. A chegada de pessoas diferentes, que provêm dum contexto vital e
cultural distinto, transforma-se num dom, porque «as histórias dos migrantes
são histórias também de encontro entre pessoas e entre culturas: para as
comunidades e as sociedades de chegada são uma oportunidade de enriquecimento e
desenvolvimento humano integral para todos».[115] Por
isso, «peço especialmente aos jovens que não caiam nas redes de quem os quer contrapor
a outros jovens que chegam aos seus países, fazendo-os ver como sujeitos
perigosos e como se não tivessem a mesma dignidade inalienável de todo o ser
humano».[116]
134. Entretanto quando se acolhe com todo o coração a pessoa
diferente, permite-se-lhe continuar a ser ela própria, ao mesmo tempo que se
lhe dá a possibilidade dum novo desenvolvimento. As várias culturas, cuja
riqueza se foi criando ao longo dos séculos, devem ser salvaguardadas para que
o mundo não fique mais pobre. Isso, porém, sem deixar de as estimular a que
permitam surgir de si mesmas algo de novo no encontro com outras realidades.
Não se pode ignorar o risco de acabarem vítimas duma esclerose cultural. Para
isso, «precisamos de comunicar, descobrir as riquezas de cada um, valorizar
aquilo que nos une e olhar as diferenças como possibilidades de crescimento no
respeito por todos. Torna-se necessário um diálogo paciente e confiante, para
que as pessoas, as famílias e as comunidades possam transmitir os valores da
própria cultura e acolher o bem proveniente das experiências alheias».[117]
135. Retomo aqui um exemplo que dei há tempos: a cultura dos latinos
é «um fermento de valores e possibilidades que pode fazer muito bem aos Estados
Unidos (…). Uma intensa imigração acaba sempre por marcar e transformar a
cultura dum lugar. (…) Na Argentina, a forte imigração italiana marcou a
cultura da sociedade e, no estilo cultural de Buenos Aires, é muito visível a
presença de aproximadamente 200.000 judeus. Se forem ajudados a integrar-se, os
imigrantes são uma bênção, uma riqueza e um novo dom, que convida a sociedade a
crescer».[118]
136. Numa perspetiva mais ampla, eu e o Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb
lembramos que «o relacionamento entre Ocidente e Oriente é uma necessidade
mútua indiscutível, que não pode ser comutada nem transcurada, para que ambos
se possam enriquecer mutuamente com a civilização do outro através da troca e
do diálogo das culturas. O Ocidente poderia encontrar na civilização do Oriente
remédios para algumas das suas doenças espirituais e religiosas causadas pelo
domínio do materialismo. E o Oriente poderia encontrar na civilização do
Ocidente tantos elementos que o podem ajudar a salvar-se da fragilidade, da
divisão, do conflito e do declínio científico, técnico e cultural. É importante
prestar atenção às diferenças religiosas, culturais e históricas que são uma
componente essencial na formação da personalidade, da cultura e da civilização
oriental; e é importante consolidar os direitos humanos gerais e comuns, para
ajudar a garantir uma vida digna para todos os homens no Oriente e no Ocidente,
evitando o uso da política de duas medidas».[119]
O intercâmbio fecundo
137. Na realidade, a ajuda mútua entre países acaba por beneficiar a
todos. Um país que progride com base no seu substrato cultural original é um
tesouro para toda a humanidade. Precisamos de fazer crescer a consciência de
que, hoje, ou nos salvamos todos ou não se salva ninguém. A pobreza, a
degradação, os sofrimentos dum lugar da terra são um silencioso terreno fértil
de problemas que, finalmente, afetarão todo o planeta. Se nos preocupa o
desaparecimento dalgumas espécies, deveria afligir-nos o pensamento de que em
qualquer lugar possam existir pessoas e povos que não desenvolvem o seu
potencial e a sua beleza por causa da pobreza ou doutros limites estruturais. É
que isto acaba por nos empobrecer a todos.
138. Se isto foi sempre verdade, hoje a certeza é maior do que nunca
devido à realidade dum mundo tão interconectado pela globalização. Precisamos
que um ordenamento jurídico, político e económico mundial «incremente e guie a
colaboração internacional para o desenvolvimento solidário de todos os povos».[120] Isto
redundará em benefício de todo o planeta, porque «a ajuda ao desenvolvimento
dos países pobres» trará «criação de riqueza para todos».[121] Do
ponto de vista do desenvolvimento integral, isto pressupõe que se conceda
«também às nações mais pobres uma voz eficaz nas decisões comuns»[122] e
procure «incentivar o acesso ao mercado internacional dos países marcados pela
pobreza e pelo subdesenvolvimento».[123]
Gratuitidade que acolhe
139. Todavia não quero limitar esta abordagem a qualquer forma de
utilitarismo. Existe a gratuitidade: é a capacidade de fazer algumas coisas,
pelo simples facto de serem boas, sem olhar a êxitos nem esperar receber
imediatamente algo em troca. Isto permite acolher o estrangeiro, mesmo que não
traga de imediato benefícios palpáveis. Mas há países que pretendem receber
apenas cientistas ou investidores.
140. Quem não vive a gratuitidade fraterna, transforma a sua
existência num comércio cheio de ansiedade: está sempre a medir aquilo que dá e
o que recebe em troca. Em contrapartida, Deus dá de graça, chegando ao ponto de
ajudar mesmo os que não são fiéis e «fazer com que o Sol se levante sobre os
bons e os maus» (Mt 5, 45). Por isso, Jesus recomenda: «Quando
deres esmola, que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua direita, a fim
de que a tua esmola permaneça em segredo» (Mt 6, 3-4). Recebemos a
vida de graça; não pagamos por ela. De igual modo, todos podemos dar sem
esperar recompensa, fazer o bem sem pretender outro tanto da pessoa que
ajudamos. É aquilo que Jesus dizia aos seus discípulos: «Recebestes de graça,
dai de graça» (Mt 10, 8).
141. A verdadeira qualidade dos diferentes países do mundo mede-se
por esta capacidade de pensar não só como país, mas também como família humana;
e isto comprova-se sobretudo nos períodos críticos. Os nacionalismos fechados
manifestam, em última análise, esta incapacidade de gratuitidade, a errada
persuasão de que podem desenvolver-se à margem da ruína dos outros e que,
fechando-se aos demais, estarão mais protegidos. O migrante é visto como um
usurpador, que nada oferece. Assim, chega-se a pensar ingenuamente que os
pobres são perigosos ou inúteis; e os poderosos, generosos benfeitores. Só poderá
ter futuro uma cultura sociopolítica que inclua o acolhimento gratuito.
Local e universal
142. Ocorre lembrar que, «entre a globalização e a localização,
também se gera uma tensão. É preciso prestar atenção à dimensão global para não
cair numa mesquinha quotidianidade. Ao mesmo tempo convém não perder de vista o
que é local, que nos faz caminhar com os pés por terra. As duas coisas unidas
impedem de cair em algum destes dois extremos: o primeiro, que os cidadãos
vivam num universalismo abstrato e globalizante (...); o outro extremo é que se
transformem num museu folclórico de eremitas localistas, condenados a repetir
sempre as mesmas coisas, incapazes de se deixar interpelar pelo que é diverso e
de apreciar a beleza que Deus espalha fora das suas fronteiras».[124] É
preciso olhar para o global, que nos resgata da mesquinhez caseira. Quando a
casa deixa de ser lar para se tornar confinamento, calabouço, resgata-nos o
global, porque é como a causa final que nos atrai para a plenitude. Ao mesmo
tempo temos de assumir intimamente o local, pois tem algo que o global não
possui: ser fermento, enriquecer, colocar em marcha mecanismos de
subsidiariedade. Portanto, a fraternidade universal e a amizade social dentro
de cada sociedade são dois polos inseparáveis e ambos essenciais. Separá-los
leva a uma deformação e a uma polarização nociva.
O sabor local
143. A solução não é uma abertura que renuncie ao próprio tesouro.
Tal como não há diálogo com o outro sem identidade pessoal, assim também não há
abertura entre povos senão a partir do amor à terra, ao povo, aos próprios
traços culturais. Não me encontro com o outro, se não possuo um substrato onde
estou firme e enraizado, pois é a partir dele que posso acolher o dom do outro
e oferecer-lhe algo de autêntico. Só posso acolher quem é diferente e perceber
a sua contribuição original, se estiver firmemente ancorado ao meu povo com a
sua cultura. Cada qual ama e cuida, com particular responsabilidade, da sua
terra e preocupa-se com o seu país, assim como deve amar e cuidar da própria
casa para que não caia, ciente de que não o virão fazer os vizinhos. O próprio
bem do mundo requer que cada um proteja e ame a sua própria terra; caso
contrário, as consequências do desastre dum país repercutir-se-ão em todo o
planeta. Isto baseia-se no sentido positivo do direito de propriedade: guardo e
cultivo algo que possuo, a fim de que possa ser uma contribuição para o bem de
todos.
144. Além disso, é um pressuposto para intercâmbios sadios e
enriquecedores. A base adquirida a partir da experiência da vida transcorrida
num certo lugar e numa determinada cultura é o que torna uma pessoa capaz de
apreender aspetos da realidade que não conseguem entender tão facilmente
quantos não possuem essa experiência. O universal não deve ser o domínio
homogéneo, uniforme e padronizado duma única forma cultural imperante, que
perderá as cores do poliedro e ficará enfadonha. É a tentação manifestada na
antiga narração da Torre de Babel: a construção daquela torre que chegasse até
ao céu não expressava a unidade entre vários povos capazes de comunicar segundo
a própria diversidade; antes pelo contrário, foi uma tentativa, nascida do
orgulho e da ambição humana, que visava criar uma unidade diferente da desejada
por Deus no seu plano providencial para as nações (cf. Gn 11,
1-11).
145. Existe uma falsa abertura ao universal, que deriva da
superficialidade vazia de quem não é capaz de compreender até ao fundo a sua
pátria, ou de quem lida com um ressentimento não resolvido face ao seu povo. Em
todo o caso, «é preciso alargar sempre o olhar para reconhecer um bem maior que
trará benefícios a todos nós. Mas há que o fazer sem se evadir nem se
desenraizar. É necessário mergulhar as raízes na terra fértil e na história do
próprio lugar, que é um dom de Deus. Trabalha-se no pequeno, no que está
próximo, mas com uma perspetiva mais ampla. (...) Não é a esfera global que aniquila,
nem a parte isolada que esteriliza».[125] É
o poliedro, onde ao mesmo tempo que cada um é respeitado no seu valor, «o todo
é mais que a parte, sendo também mais do que a simples soma delas».[126]
O horizonte universal
146. Há narcisismos bairristas que não expressam um amor sadio pelo
próprio povo e a sua cultura. Escondem um espírito fechado que, devido a uma
certa insegurança e medo do outro, prefere criar muralhas defensivas para sua
salvaguarda. Mas não é possível ser saudavelmente local sem uma sincera e
cordial abertura ao universal, sem se deixar interpelar pelo que acontece
noutras partes, sem se deixar enriquecer por outras culturas, nem se
solidarizar com os dramas dos outros povos. Este «localismo» encerra-se
obsessivamente numas poucas ideias, costumes e seguranças, revelando-se incapaz
de admirar as múltiplas possibilidades e belezas que oferece o mundo inteiro, e
carecendo duma solidariedade autêntica e generosa. Deste modo, a vida local
deixa de ser verdadeiramente recetiva, já não se deixa completar pelo outro;
consequentemente, fica limitada nas suas possibilidades de desenvolvimento,
torna-se estática e adoece. Na realidade, toda a cultura saudável é, por
natureza, aberta e acolhedora, pelo que «uma cultura sem valores universais não
é uma verdadeira cultura».[127]
147. Temos de reconhecer que quanto menor for a amplitude da mente e
do coração duma pessoa, tanto menos poderá interpretar a realidade circundante
em que está imersa. Sem o relacionamento e o confronto com quem é diferente,
torna-se difícil ter um conhecimento claro e completo de si mesmo e da sua
terra, uma vez que as outras culturas não constituem inimigos de quem seja
preciso defender-se, mas reflexos distintos da riqueza inexaurível da vida
humana. Ao olhar para si mesmo do ponto de vista do outro, de quem é diferente,
cada um pode reconhecer melhor as peculiaridades da sua própria pessoa e
cultura: as suas riquezas, possibilidades e limites. A experiência que se
realiza num lugar deve desenvolver-se ora «em contraste» ora «em sintonia» com
as experiências doutras pessoas que vivem em contextos culturais diversos.[128]
148. Na realidade, uma sã abertura nunca ameaça a identidade, porque,
ao enriquecer-se com elementos doutros lugares, uma cultura viva não faz uma
cópia nem mera repetição, mas integra as novidades segundo modalidades
próprias. Isto provoca o nascimento duma nova síntese que, em última análise,
beneficia a todos, já que a cultura donde provêm estas contribuições acaba mais
devolvida. Por isso, exortei os povos nativos a cuidarem das suas próprias
raízes e culturas ancestrais, mas esclarecendo que não era «minha intenção
propor um indigenismo completamente fechado, a-histórico, estático, que se
negue a toda e qualquer forma de mestiçagem», pois «a própria identidade
cultural aprofunda-se e enriquece-se no diálogo com os que são diferentes, e o
modo autêntico de a conservar não é um isolamento que empobrece».[129] O
mundo cresce e enche-se de nova beleza, graças a sucessivas sínteses que se
produzem entre culturas abertas, fora de qualquer imposição cultural.
149. Para estimular uma sadia relação entre o amor à pátria e uma
cordial inserção na humanidade inteira, convém lembrar que a sociedade mundial
não é o resultado da soma dos vários países, mas sim a própria comunhão que
existe entre eles, a mútua inclusão que precede o aparecimento de todo o grupo
particular. É neste entrelaçamento da comunhão universal que se integra cada
grupo humano, e aí encontra a sua beleza. Assim, cada pessoa nascida num
determinado contexto sabe que pertence a uma família maior, sem a qual não é
possível ter uma compreensão plena de si mesma.
150. Esta abordagem exige, em última análise, que se aceite com
alegria que nenhum povo, nenhuma cultura, nenhum indivíduo pode obter tudo de
si mesmo. Os outros são, constitutivamente, necessários para a construção duma
vida plena. A consciência do limite ou da exiguidade, longe de ser uma ameaça,
torna-se a chave segundo a qual sonhar e elaborar um projeto comum. Com efeito,
«o homem é o ser fronteiriço que não tem qualquer fronteira».[130]
A partir da própria
região
151. Graças ao intercâmbio regional, a partir do qual os países mais
frágeis se abrem ao mundo inteiro, é possível fazer com que as particularidades
não se diluam na universalidade. Uma adequada e autêntica abertura ao mundo
pressupõe a capacidade de se abrir ao vizinho, numa família de nações. A
integração cultural, económica e política com os povos vizinhos deve ser
acompanhada por um processo educativo que promova o valor do amor ao vizinho,
primeiro exercício indispensável para se conseguir uma sadia integração
universal.
152. Nalguns bairros populares, vive-se ainda aquele espírito de
«vizinhança» segundo o qual cada um sente espontaneamente o dever de acompanhar
e ajudar o vizinho. Nos lugares que conservam tais valores comunitários, as
relações de proximidade são marcadas pela gratuitidade, solidariedade e
reciprocidade, partindo do sentido de um «nós» do bairro.[131] Oxalá
fosse possível viver isto também entre países vizinhos, com a capacidade de
construir uma vizinhança cordial entre os seus povos. Mas as visões
individualistas traduzem-se nas relações entre países. O risco de viver
acautelando-nos uns dos outros, vendo os outros como concorrentes ou inimigos
perigosos, é transferido para o relacionamento com os povos da região. Talvez
tenhamos sido educados neste medo e nesta desconfiança.
153. Existem países poderosos e empresas grandes que lucram com este
isolamento e preferem negociar com cada país separadamente. Entretanto, para os
países pequenos ou pobres, abre-se a possibilidade de alcançar acordos
regionais com os seus vizinhos, que lhes permitam negociar em bloco evitando
tornar-se segmentos marginais e dependentes das grandes potências. Hoje nenhum
Estado nacional isolado é capaz de garantir o bem comum da própria população.
Capítulo V
A POLÍTICA MELHOR
154. Para se tornar possível o desenvolvimento duma comunidade
mundial capaz de realizar a fraternidade a partir de povos e nações que vivam a
amizade social, é necessária a política melhor, a política colocada ao serviço
do verdadeiro bem comum. Mas hoje, infelizmente, muitas vezes a política assume
formas que dificultam o caminho para um mundo diferente.
Populismos e
liberalismos
155. O desprezo pelos vulneráveis pode esconder-se em formas
populistas que, demagogicamente, se servem deles para os seus fins, ou em
formas liberais ao serviço dos interesses económicos dos poderosos. Em ambos os
casos, é palpável a dificuldade de pensar num mundo aberto onde haja lugar para
todos, que inclua os mais frágeis e respeite as diferentes culturas.
Popular ou populista
156. Nos últimos anos, os termos «populismo» e «populista» invadiram
os meios de comunicação e a linguagem em geral, perdendo assim o valor que
poderiam conter para compor uma das polaridades da sociedade dividida.
Chegou-se ao ponto de pretender classificar os indivíduos, os grupos, as
sociedades e os governos a partir da divisão binária «populista» ou «não populista».
Já não é possível que alguém manifeste a sua opinião sobre um tema qualquer,
sem tentarem classificá-lo num desses dois polos: umas vezes para o
desacreditar injustamente, outras para o exaltar desmedidamente.
157. Mas a pretensão de introduzir o populismo como chave de leitura
da realidade social contém outro ponto fraco: ignora a legitimidade da noção de
povo. A tentativa de fazer desaparecer da linguagem esta categoria poderia
levar à eliminação da própria palavra «democracia», cujo significado é precisamente
«governo do povo». Contudo, para afirmar que a sociedade é mais do que a mera
soma de indivíduos, necessita-se do termo «povo». A verdade é que há fenómenos
sociais que estruturam as maiorias, existem megatendências e aspirações
comunitárias; além disso, pode-se pensar em objetivos comuns, independentemente
das diferenças, para implementar juntos um projeto compartilhado; enfim, é
muito difícil projetar algo de grande a longo prazo, se não se consegue
torná-lo um sonho coletivo. Tudo isto está expresso no substantivo «povo» e no
adjetivo «popular». Se não se incluíssem na linguagem – juntamente com uma
sólida crítica da demagogia –, ter-se-ia renunciado a um aspeto fundamental da
realidade social.
158. Subjacente encontra-se um mal-entendido. «Povo não é uma
categoria lógica, nem uma categoria mística, no sentido de que tudo o que faz o
povo é bom, ou no sentido de que o povo seja uma entidade angelical. É uma
categoria mítica. (...) Quando explicas o que é um povo, recorres a categorias
lógicas porque precisas de o descrever: é verdade, elas são necessárias. Mas,
deste modo, não consegues explicar o sentido de pertença a um povo; a palavra
povo tem algo mais que não se pode explicar logicamente. Pertencer a um povo é
fazer parte duma identidade comum, formada por vínculos sociais e culturais. E
isto não é algo de automático; muito pelo contrário: é um processo lento e
difícil... rumo a um projeto comum».[132]
159. Existem líderes populares, capazes de interpretar o sentir dum
povo, a sua dinâmica cultural e as grandes tendências duma sociedade. O serviço
que prestam, congregando e guiando, pode ser a base para um projeto duradouro
de transformação e crescimento, que implica também a capacidade de ceder o
lugar a outros na busca do bem comum. Mas degenera num populismo insano, quando
se transforma na habilidade de alguém atrair consensos a fim de instrumentalizar
politicamente a cultura do povo, sob qualquer sinal ideológico, ao serviço do
seu projeto pessoal e da sua permanência no poder. Outras vezes, procura
aumentar a popularidade fomentando as inclinações mais baixas e egoístas
dalguns setores da população. E o caso agrava-se quando se pretende, com formas
rudes ou subtis, o servilismo das instituições e da legalidade.
160. Os grupos populistas fechados deformam a palavra «povo», porque
aquilo de que falam não é um verdadeiro povo. De facto, a categoria «povo» é
aberta. Um povo vivo, dinâmico e com futuro é aquele que permanece
constantemente aberto a novas sínteses assumindo em si o que é diverso. E
fá-lo, não se negando a si mesmo, mas com a disposição de se deixar mover,
interpelar, crescer, enriquecer por outros; e, assim, pode evoluir.
161. Outra expressão degenerada duma autoridade popular é a busca do
interesse imediato. Responde-se a exigências populares, com o fim de ter
garantido os votos ou o apoio do povo, mas sem avançar numa tarefa árdua e
constante que proporcione às pessoas os recursos para o seu desenvolvimento, de
modo que possam sustentar a vida com o seu esforço e criatividade. Nesta linha,
deixei claro: «longe de mim propor um populismo irresponsável».[133] Por
um lado, a superação da desigualdade requer que se desenvolva a economia,
fazendo frutificar as potencialidades de cada região e assegurando assim uma
equidade sustentável;[134] por
outro, «os planos de assistência, que acorrem a determinadas emergências,
deveriam considerar-se apenas como respostas provisórias».[135]
162. A grande questão é o trabalho. Ser verdadeiramente popular –
porque promove o bem do povo – é garantir a todos a possibilidade de fazer
germinar as sementes que Deus colocou em cada um, as suas capacidades, a sua
iniciativa, as suas forças. Esta é a melhor ajuda para um pobre, o melhor
caminho para uma existência digna. Por isso, insisto que «ajudar os pobres com
o dinheiro deve sempre ser um remédio provisório para enfrentar emergências. O
verdadeiro objetivo deveria ser sempre consentir-lhes uma vida digna através do
trabalho».[136] Por
mais que mudem os sistemas de produção, a política não pode renunciar ao
objetivo de conseguir que a organização duma sociedade assegure a cada pessoa
uma maneira de contribuir com as suas capacidades e o seu esforço. Com efeito,
«não há pobreza pior do que aquela que priva do trabalho e da dignidade do
trabalho».[137] Numa
sociedade realmente desenvolvida, o trabalho é uma dimensão essencial da vida
social, porque não é só um modo de ganhar o pão, mas também um meio para o
crescimento pessoal, para estabelecer relações sadias, expressar-se a si
próprio, partilhar dons, sentir-se corresponsável no desenvolvimento do mundo
e, finalmente, viver como povo.
Valores e limites das
visões liberais
163. A categoria de povo, que inclui intrinsecamente uma avaliação
positiva dos vínculos comunitários e culturais, habitualmente é rejeitada pelas
visões liberais individualistas, que consideram a sociedade como uma mera soma
de interesses que coexistem. Falam de respeito pelas liberdades, mas sem a raiz
duma narrativa comum. Em certos contextos, é frequente acusar como populistas
quantos defendem os direitos dos mais frágeis da sociedade. Para as referidas
visões, a categoria de povo é uma mitificação de algo que não existe na
realidade. Aqui, porém, cria-se uma polarização desnecessária, pois nem a ideia
de povo nem a de próximo são categorias puramente míticas ou românticas que
excluam ou desprezem a organização social, a ciência e as instituições da
sociedade civil.[138]
164. A caridade reúne as duas dimensões – a mítica e a institucional
–, pois implica um caminho eficaz de transformação da história que exige
incorporar tudo: instituições, direito, técnica, experiência, contribuições
profissionais, análise científica, procedimentos administrativos… Porque, «de
facto, não há vida privada, se não for protegida por uma ordem pública; um lar
acolhedor doméstico não tem intimidade, se não estiver sob a tutela da
legalidade, dum estado de tranquilidade fundado na lei e na força e com a
condição dum mínimo de bem-estar garantido pela divisão do trabalho, pelas
trocas comerciais, pela justiça social e pela cidadania política».[139]
165. A verdadeira caridade é capaz de incluir tudo isto na sua
dedicação; e se se deve expressar no encontro de pessoa a pessoa, também
consegue chegar a uma irmã, a um irmão distante e até desconhecido através dos
vários recursos que as instituições duma sociedade organizada, livre e criativa
são capazes de gerar. Se voltarmos ao caso do bom samaritano, vemos que até ele
precisou da existência duma estalagem que lhe permitisse resolver o que não
estava em condições de garantir sozinho, naquele momento. O amor ao próximo é
realista, e não desperdiça nada que seja necessário para uma transformação da
história que beneficie os últimos. Às vezes deparamo-nos com ideologias de
esquerda ou pensamentos sociais cultivando hábitos individualistas e
procedimentos ineficazes, porque beneficiam a poucos; entretanto a multidão dos
abandonados fica à mercê da possível boa vontade de alguns. Isto demonstra que
é necessário fazer crescer não só uma espiritualidade da fraternidade, mas
também e ao mesmo tempo uma organização mundial mais eficiente para ajudar a
resolver os problemas prementes dos abandonados que sofrem e morrem nos países
pobres. Naturalmente isto implica que não exista apenas uma possível via de
saída, uma única metodologia aceitável, uma receita económica aplicável igualmente
por todos, e pressupõe que mesmo a ciência mais rigorosa possa propor percursos
diferentes.
166. A consistência de tudo isto poderá ser bem pouca, se perdermos a
capacidade de reconhecer a necessidade duma mudança nos corações humanos, nos
hábitos e estilos de vida. É o que acontece quando a propaganda política, os
meios e os criadores de opinião pública persistem em fomentar uma cultura
individualista e ingénua à vista de interesses económicos desenfreados e da
organização das sociedades ao serviço daqueles que já têm demasiado poder. Por
isso, a minha crítica ao paradigma tecnocrático não significa que só procurando
controlar os seus excessos é que poderemos estar seguros, já que o perigo maior
não está nas coisas, nas realidades materiais, nas organizações, mas no modo
como as pessoas se servem delas. A questão é a fragilidade humana, a tendência
humana constante para o egoísmo, que faz parte daquilo que a tradição cristã
chama «concupiscência»: a inclinação do ser humano a fechar-se na imanência do próprio
eu, do seu grupo, dos seus interesses mesquinhos. Esta concupiscência não é um
defeito do nosso tempo; existe desde que o homem é homem, limitando-se
simplesmente a transformar-se, adquirir modalidades diferentes no decorrer dos
séculos, utilizando os instrumentos que o momento histórico coloca à sua
disposição. Mas, é possível dominá-la com a ajuda de Deus.
167. A tarefa educativa, o desenvolvimento de hábitos solidários, a
capacidade de pensar a vida humana de forma mais integral, a profundidade espiritual
são realidades necessárias para dar qualidade às relações humanas, de tal modo
que seja a própria sociedade a reagir face às próprias injustiças, às
aberrações, aos abusos dos poderes económicos, tecnológicos, políticos e
mediáticos. Há visões liberais que ignoram este fator da fragilidade humana e
imaginam um mundo que corresponda a uma determinada ordem que poderia, por si
só, assegurar o futuro e a solução de todos os problemas.
168. O mercado, por si só, não resolve tudo, embora às vezes nos queiram
fazer crer neste dogma de fé neoliberal. Trata-se dum pensamento pobre,
repetitivo, que propõe sempre as mesmas receitas perante qualquer desafio que
surja. O neoliberalismo reproduz-se sempre igual a si mesmo, recorrendo à
mágica teoria do «derrame» ou do «gotejamento» – sem a nomear – como única via
para resolver os problemas sociais. Não se dá conta de que a suposta
redistribuição não resolve a desigualdade, sendo, esta, fonte de novas formas
de violência que ameaçam o tecido social. Por um lado, é indispensável uma
política económica ativa, visando «promover uma economia que favoreça a
diversificação produtiva e a criatividade empresarial»,[140] para
ser possível aumentar os postos de trabalho em vez de os reduzir. A especulação
financeira, tendo a ganância de lucro fácil como objetivo fundamental, continua
a fazer estragos. Por outro lado, «sem formas internas de solidariedade e de
confiança mútua, o mercado não pode cumprir plenamente a própria função
económica. E, hoje, foi precisamente esta confiança que veio a faltar».[141] O
fim da história não foi como previsto, tendo as receitas dogmáticas da teoria
económica imperante demonstrado que elas mesmas não são infalíveis. A
fragilidade dos sistemas mundiais perante a pandemia evidenciou que nem tudo se
resolve com a liberdade de mercado e que, além de reabilitar uma política
saudável que não esteja sujeita aos ditames das finanças, «devemos voltar a pôr
a dignidade humana no centro e sobre este pilar devem ser construídas as
estruturas sociais alternativas de que precisamos».[142]
169. Em determinadas visões económicas fechadas e monocromáticas,
parece que não têm lugar, por exemplo, os Movimentos Populares que reúnem
desempregados, trabalhadores precários e informais e tantos outros que não
entram facilmente nos canais já estabelecidos. Na realidade, criam variadas
formas de economia popular e de produção comunitária. É necessário pensar a
participação social, política e económica segundo modalidades tais «que incluam
os movimentos populares e animem as estruturas de governo locais, nacionais e internacionais
com aquela torrente de energia moral que nasce da integração dos excluídos na
construção do destino comum» e, por sua vez, se incentive a que «estes
movimentos, estas experiências de solidariedade que crescem de baixo, do
subsolo do planeta, confluam, sejam mais coordenados, se encontrem».[143] Mas
fazê-lo sem trair o seu estilo caraterístico, porque são «semeadores de
mudanças, promotores de um processo para o qual convergem milhões de pequenas e
grandes ações interligadas de modo criativo, como numa poesia».[144] Neste
sentido, são «poetas sociais» que à sua maneira trabalham, propõem, promovem e
libertam. Com eles, será possível um desenvolvimento humano integral, que
implica superar «a ideia das políticas sociais concebidas como uma
política para os pobres, mas nunca com os
pobres, nunca dos pobres, e muito menos inserida num projeto
que reúna os povos».[145] Embora
incomodem e mesmo se alguns «pensadores» não sabem como classificá-los, é
preciso ter a coragem de reconhecer que, sem eles, «a democracia atrofia-se,
torna-se um nominalismo, uma formalidade, perde representatividade, vai-se
desencarnando porque deixa fora o povo na sua luta diária pela dignidade, na
construção de seu destino».[146]
O poder internacional
170. Deixai-me repetir aqui que «a crise financeira dos anos 2007 e
2008 era a ocasião para o desenvolvimento duma nova economia mais atenta aos
princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira
especulativa e da riqueza virtual. Mas não houve uma reação que fizesse
repensar os critérios obsoletos que continuam a governar o mundo».[147] Antes
pelo contrário, parece que as reais estratégias, posteriormente desenvolvidas
no mundo, se têm orientado para maior individualismo, menor integração, maior
liberdade para os que são verdadeiramente poderosos e sempre encontram maneira
de escapar ilesos.
171. Gostaria de insistir no facto que «dar a cada um o que lhe é
devido, segundo a definição clássica de justiça, significa que nenhum indivíduo
ou grupo humano se pode considerar omnipotente, autorizado a pisar a dignidade
e os direitos dos outros indivíduos ou dos grupos sociais. A efetiva
distribuição do poder, sobretudo político, económico, militar e tecnológico,
entre uma pluralidade de sujeitos e a criação dum sistema jurídico de regulação
das reivindicações e dos interesses realiza a limitação do poder. Mas, hoje, o
panorama mundial apresenta-nos muitos direitos falsos e, ao mesmo tempo, amplos
setores sem proteção, vítimas inclusivamente dum mau exercício do poder».[148]
172. O século XXI «assiste a uma perda de poder dos Estados
nacionais, sobretudo porque a dimensão económico-financeira, de carater
transnacional, tende a prevalecer sobre a política. Neste contexto, torna-se
indispensável a maturação de instituições internacionais mais fortes e
eficazmente organizadas, com autoridades designadas de maneira imparcial por
meio de acordos entre governos nacionais e dotadas de poder de sancionar».[149] Quando
se fala duma possível forma de autoridade mundial regulada pelo direito,[150] não
se deve necessariamente pensar numa autoridade pessoal. Mas deveria prever pelo
menos a criação de organizações mundiais mais eficazes, dotadas de autoridade
para assegurar o bem comum mundial, a erradicação da fome e da miséria e a
justa defesa dos direitos humanos fundamentais.
173. Nesta linha, lembro que é necessária uma reforma «quer da
Organização das Nações Unidas quer da arquitetura económica e financeira
internacional, para que seja possível uma real concretização do conceito de
família de nações».[151] Isto
pressupõe, sem dúvida, limites jurídicos precisos para evitar que seja uma
autoridade cooptada por poucos países e, ao mesmo tempo, para impedir
imposições culturais ou a redução das liberdades básicas das nações mais
frágeis por causa de diferenças ideológicas. Na verdade, «a comunidade
internacional é uma comunidade jurídica fundada sobre a soberania de cada
Estado-membro, sem vínculos de subordinação que neguem ou limitem a cada qual a
sua independência».[152] Com
efeito, «a tarefa das Nações Unidas, com base nos postulados do Preâmbulo e dos
primeiros artigos da sua Carta constitucional, pode ser vista como o
desenvolvimento e a promoção da soberania do direito, sabendo que a justiça é
um requisito indispensável para se realizar o ideal da fraternidade universal.
(…) É preciso garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso
incansável às negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto
pela Carta das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica
fundamental».[153] É
necessário evitar que esta Organização seja deslegitimada, pois os seus
problemas ou deficiências podem ser enfrentados e resolvidos em conjunto.
174. Requer-se coragem e
generosidade para estabelecer livremente certos objetivos comuns e assegurar o
cumprimento em todo o mundo dalgumas normas essenciais. Para que isto seja
verdadeiramente útil, deve-se apoiar «a exigência de fazer fé nos compromissos
subscritos (pacta sunt servanda)»,[154] a
fim de evitar «a tentação de fazer apelo mais ao direito da força que à força
do direito».[155] Nesta
perspetiva, «os instrumentos normativos para a solução pacífica das
controvérsias devem ser repensados de tal modo que lhes sejam reforçados o
alcance e a obrigatoriedade».[156] Dentre
esses instrumentos normativos, há que favorecer os acordos multilaterais entre
os Estados, porque garantem melhor do que os acordos bilaterais o cuidado dum
bem comum realmente universal e a tutela dos Estados mais vulneráveis.
175. Graças a Deus, muitos grupos e organizações da sociedade civil
ajudam a compensar as debilidades da Comunidade Internacional, a sua falta de
coordenação em situações complexas, a sua carência de atenção relativamente a
direitos humanos fundamentais e a situações muito críticas de alguns grupos.
Assim, adquire uma expressão concreta o princípio da subsidiariedade, que
garante a participação e a ação das comunidades e organizações de nível menor,
que integram de modo complementar a ação do Estado. Muitas vezes, realizam
esforços admiráveis com o pensamento no bem comum, e alguns dos seus membros
chegam a cumprir gestos verdadeiramente heroicos que mostram de quanta bondade
ainda é capaz a nossa humanidade.
Uma caridade social e
política
176. Atualmente muitos possuem uma má noção da política, e não se
pode ignorar que frequentemente, por trás deste facto, estão os erros, a
corrupção e a ineficiência de alguns políticos. A isto vêm juntar-se as
estratégias que visam enfraquecê-la, substituí-la pela economia ou dominá-la
por alguma ideologia. E contudo poderá o mundo funcionar sem política? Poderá
encontrar um caminho eficaz para a fraternidade universal e a paz social sem
uma boa política?[157]
A política necessária
177. Gostaria de insistir que «a política não deve submeter-se à
economia, e esta não deve submeter-se aos ditames e ao paradigma eficientista
da tecnocracia».[158] Embora
se deva rejeitar o mau uso do poder, a corrupção, a falta de respeito das leis
e a ineficiência, «não se pode justificar uma economia sem política, porque
seria incapaz de promover outra lógica para governar os vários aspetos da crise
atual».[159] Pelo
contrário, «precisamos duma política que pense com visão ampla e leve por
diante uma reformulação integral, abrangendo num diálogo interdisciplinar os
vários aspetos da crise».[160] Penso
numa «política salutar, capaz de reformar as instituições, coordená-las e
dotá-las de bons procedimentos, que permitam superar pressões e inércias
viciosas».[161] Não
se pode pedir isto à economia, nem aceitar que ela assuma o poder real do
Estado.
178. Perante tantas formas de política mesquinhas e fixadas no
interesse imediato, lembro que «a grandeza política mostra-se quando, em
momentos difíceis, se trabalha com base em grandes princípios e pensando no bem
comum a longo prazo. O poder político tem muita dificuldade em assumir este
dever num projeto de nação»[162] e,
mais ainda, num projeto comum para a humanidade presente e futura. Pensar nos
que hão de vir não tem utilidade para fins eleitorais, mas é o que exige uma
justiça autêntica, porque, como ensinaram os bispos de Portugal, a terra «é um
empréstimo que cada geração recebe e deve transmitir à geração seguinte».[163]
179. A sociedade mundial tem graves carências estruturais que não se
resolvem com remendos ou soluções rápidas meramente ocasionais. Há coisas que
devem ser mudadas com reajustamentos profundos e transformações importantes. E
só uma política sã poderia conduzir o processo, envolvendo os mais diversos
setores e os conhecimentos mais variados. Desta forma, uma economia integrada
num projeto político, social, cultural e popular que vise o bem comum pode
«abrir caminho a oportunidades diferentes, que não implica frenar a
criatividade humana nem o seu sonho de progresso, mas orientar esta energia por
novos canais».[164]
O amor político
180. Reconhecer todo o ser humano como um irmão ou uma irmã e
procurar uma amizade social que integre a todos não são meras utopias. Exigem a
decisão e a capacidade de encontrar os percursos eficazes, que assegurem a sua
real possibilidade. Todo e qualquer esforço nesta linha torna-se um exercício
alto da caridade. Com efeito, um indivíduo pode ajudar uma pessoa necessitada,
mas, quando se une a outros para gerar processos sociais de fraternidade e justiça
para todos, entra no «campo da caridade mais ampla, a caridade política».[165] Trata-se
de avançar para uma ordem social e política, cuja alma seja a caridade social.[166] Convido
uma vez mais a revalorizar a política, que «é uma sublime vocação, é uma das
formas mais preciosas de caridade, porque busca o bem comum».[167]
181. Todos os compromissos decorrentes da doutrina social da Igreja
«derivam da caridade que é – como ensinou Jesus – a síntese de toda a Lei
(cf. Mt 22, 36-40)».[168] Isto
exige reconhecer que «o amor, cheio de pequenos gestos de cuidado mútuo, é
também civil e político, manifestando-se em todas as ações que procuram
construir um mundo melhor».[169] Por
este motivo, o amor expressa-se não só nas relações íntimas e próximas, mas
também nas «macrorrelações como relacionamentos sociais, económicos e
políticos».[170]
182. Esta caridade política supõe ter maturado um sentido social que
supere toda a mentalidade individualista: «A caridade social leva-nos a amar o
bem comum e a buscar efetivamente o bem de todas as pessoas, consideradas não
só individualmente, mas também na dimensão social que as une».[171] Cada
um é plenamente pessoa quando pertence a um povo e, vice-versa, não há um
verdadeiro povo sem referência ao rosto de cada pessoa. Povo e pessoa são
termos correlativos. Contudo, hoje, pretende-se reduzir as pessoas a indivíduos
facilmente manipuláveis por poderes que visam interesses ilegítimos. A boa
política procura caminhos de construção de comunidade nos diferentes níveis da
vida social, a fim de reequilibrar e reordenar a globalização para evitar os
seus efeitos desagregadores.
Amor eficaz
183. A partir do «amor social»,[172] é
possível avançar para uma civilização do amor a que todos nos podemos sentir
chamados. Com o seu dinamismo universal, a caridade pode construir um mundo novo,[173] porque
não é um sentimento estéril, mas o modo melhor de alcançar vias eficazes de
desenvolvimento para todos. O amor social é uma «força capaz de suscitar novas
vias para enfrentar os problemas do mundo de hoje e renovar profundamente,
desde o interior, as estruturas, organizações sociais, ordenamentos jurídicos».[174]
184. A caridade está no centro de toda a vida social sadia e aberta.
Todavia, hoje, «não é difícil ouvir declarar a sua irrelevância para
interpretar e orientar as responsabilidades morais».[175] É
muito mais do que um sentimentalismo subjetivo, naturalmente se aparece unida
ao compromisso com a verdade, para que não acabe «prisioneira das emoções e
opiniões contingentes dos indivíduos».[176] É
precisamente a relação da caridade com a verdade que favorece o seu
universalismo, evitando assim que ela acabe «confinada num âmbito restrito e
carente de relações».[177] Caso
contrário, será «excluída dos projetos e processos de construção dum
desenvolvimento humano de alcance universal, no diálogo entre o saber e a
realização prática».[178] Privada
da verdade, a emotividade fica sem conteúdos relacionais e sociais. Por isso, a
abertura à verdade protege a caridade duma fé falsa, que a priva de «amplitude
humana e universal».[179]
185. A caridade precisa da luz da verdade, que buscamos
constantemente, e «esta luz é simultaneamente a luz da razão e a da fé»,[180] sem
relativismos. Isto supõe também o desenvolvimento das ciências e a sua
contribuição insubstituível para encontrar os percursos concretos e mais
seguros para alcançar os resultados esperados. Com efeito, quando está em jogo
o bem dos outros, não bastam as boas intenções, mas é preciso conseguir
efetivamente aquilo de que eles e seus países necessitam para se realizar.
A atividade do amor
político
186. Existe o chamado amor «elícito»: expressa os atos que brotam
diretamente da virtude da caridade, dirigidos a pessoas e povos. Mas há também
um amor «imperado»: traduz os atos de caridade que nos impelem a criar
instituições mais sadias, regulamentos mais justos, estruturas mais solidárias.[181] Por
isso, é «um ato de caridade, igualmente indispensável, o empenho com o objetivo
de organizar e estruturar a sociedade de modo que o próximo não se venha a
encontrar na miséria».[182] É
caridade acompanhar uma pessoa que sofre, mas é caridade também tudo o que se
realiza – mesmo sem ter contacto direto com essa pessoa – para modificar as
condições sociais que provocam o seu sofrimento. Alguém ajuda um idoso a
atravessar um rio, e isto é caridade primorosa; mas o político constrói-lhe uma
ponte, e isto também é caridade. É caridade se alguém ajuda outra pessoa
fornecendo-lhe comida, mas o político cria-lhe um emprego, exercendo uma forma
sublime de caridade que enobrece a sua ação política.
Os sacrifícios do amor
187. Esta caridade, coração do espírito da política, é sempre um amor
preferencial pelos últimos, que subjaz a todas as ações realizadas em seu
favor.[183] Só
com um olhar cujo horizonte esteja transformado pela caridade, levando-nos a
perceber a dignidade do outro, é que os pobres são reconhecidos e apreciados na
sua dignidade imensa, respeitados no seu estilo próprio e cultura e, por
conseguinte, verdadeiramente integrados na sociedade. Um tal olhar é o núcleo
do autêntico espírito da política. Os caminhos que se abrem a partir dele, são
diferentes dos caminhos dum pragmatismo sem alma. Por exemplo, «não se pode
enfrentar o escândalo da pobreza promovendo estratégias de contenção que só
tranquilizam e transformam os pobres em seres domesticados e inofensivos. Como
é triste ver que, por detrás de presumíveis obras altruístas, o outro é reduzido
à passividade».[184] O
necessário é haver distintos canais de expressão e participação social. A
educação está ao serviço deste caminho, para que cada ser humano possa ser
artífice do seu destino. Demonstra aqui o seu valor o princípio de subsidiariedade,
inseparável do princípio de solidariedade.
188. Isto demonstra a urgência de se encontrar uma solução para tudo
o que atenta contra os direitos humanos fundamentais. Os políticos são chamados
a «cuidar da fragilidade, da fragilidade dos povos e das pessoas. Cuidar da
fragilidade quer dizer força e ternura, luta e fecundidade, no meio dum modelo
funcionalista e individualista que conduz inexoravelmente à “cultura do
descarte” (…); significa assumir o presente na sua situação mais marginal e
angustiante e ser capaz de ungi-lo de dignidade».[185] Embora
acarrete certamente imenso trabalho, «que tudo se faça para tutelar a condição
e a dignidade da pessoa humana»![186] O
político é operoso, é um construtor com grandes objetivos, com olhar amplo,
realista e pragmático, inclusive para além do seu próprio país. As maiores
preocupações dum político não deveriam ser as causadas por uma descida nas
sondagens, mas por não encontrar uma solução eficaz para «o fenómeno da
exclusão social e económica, com suas tristes consequências de tráfico de seres
humanos, tráfico de órgãos e tecidos humanos, exploração sexual de meninos e
meninas, trabalho escravo, incluindo a prostituição, tráfico de drogas e de
armas, terrorismo e criminalidade internacional organizada. Tal é a magnitude
destas situações e o número de vidas inocentes envolvidas que devemos evitar
qualquer tentação de cair num nominalismo declamatório com efeito
tranquilizador sobre as consciências. Devemos ter cuidado com as nossas
instituições para que sejam realmente eficazes na luta contra estes flagelos».[187] Consegue-se
isto, aproveitando de forma inteligente os grandes recursos do desenvolvimento
tecnológico.
189. Ainda estamos longe duma globalização dos direitos humanos mais
essenciais. Por isso a política mundial não pode deixar de colocar entre seus
objetivos principais e irrenunciáveis o de eliminar efetivamente a fome. Com
efeito, «quando a especulação financeira condiciona o preço dos alimentos,
tratando-os como uma mercadoria qualquer, milhões de pessoas sofrem e morrem de
fome. Por outro lado, descartam-se toneladas de alimentos. Isto constitui um
verdadeiro escândalo. A fome é criminosa, a alimentação é um direito
inalienável».[188] Muitas
vezes hoje, enquanto nos enredamos em discussões semânticas ou ideológicas,
deixamos que irmãos e irmãs morram ainda de fome ou de sede, sem um teto ou sem
acesso a serviços de saúde. Juntamente com estas necessidades elementares por
satisfazer, outra vergonha para a humanidade que a política internacional não deveria
continuar a tolerar – não se ficando por discursos e boas intenções – é o
tráfico de pessoas. Trata-se daquele mínimo que não se pode adiar mais.
Amor que integra e reúne
190. A caridade política expressa-se também na abertura a todos.
Sobretudo o governante é chamado a renúncias que tornem possível o encontro,
procurando a convergência pelo menos nalguns temas. Sabe escutar o ponto de
vista do outro, facilitando um espaço a todos. Com renúncias e paciência, um
governante pode ajudar a criar aquele poliedro bom onde todos encontram um
lugar. Nisto, não resultam as negociações de tipo económico; é algo mais: é um
intercâmbio de dons a favor do bem comum. Parece uma utopia ingénua, mas não
podemos renunciar a este sublime objetivo.
191. Vendo que todo o tipo de intolerância fundamentalista danifica
as relações entre pessoas, grupos e povos, comprometamo-nos a viver e ensinar o
valor do respeito, o amor capaz de aceitar as várias diferenças, a prioridade
da dignidade de todo o ser humano sobre quaisquer ideias, sentimentos,
atividades e até pecados que possa ter. Enquanto os fanatismos, as lógicas
fechadas e a fragmentação social e cultural proliferam na sociedade atual, um
bom político dá o primeiro passo para que se ouçam as diferentes vozes. É
verdade que as diferenças geram conflitos, mas a uniformidade gera asfixia e
neutraliza-nos culturalmente. Não nos resignemos a viver fechados num fragmento
da realidade.
192. Neste contexto, gostaria de lembrar que eu juntamente com o
Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb pedimos «aos artífices da política internacional e
da economia mundial, para se comprometer seriamente na difusão da tolerância,
da convivência e da paz; para intervir, o mais breve possível, a fim de se
impedir o derramamento de sangue inocente».[189] E
quando uma determinada política semeia o ódio e o medo em relação a outras
nações em nome do bem do próprio país, é necessário estar alerta, reagir a
tempo e corrigir imediatamente o rumo.
Mais fecundidade que
resultados
193. Ao mesmo tempo que realiza esta atividade incansável, cada
político permanece um ser humano, chamado a viver o amor nas suas relações interpessoais
diárias. É uma pessoa e precisa de se dar conta que «o mundo moderno, devido à
sua perfeição técnica, tende a racionalizar cada vez mais a satisfação dos
desejos humanos, classificados e distribuídos entre vários serviços. Um homem é
chamado cada vez menos pelo seu próprio nome, cada vez menos será tratado como
pessoa este ser, único no mundo, que tem o seu próprio coração, os seus
sofrimentos, problemas e alegrias e a sua própria família. Só se conhecerão as
suas doenças para tratá-las, a sua falta de dinheiro para fornecê-lo, a sua
necessidade de casa para alojá-lo, o seu desejo de lazer e de distrações para
lhos organizar». E contudo «amar o mais insignificante dos seres humanos como a
um irmão, como se existisse apenas ele no mundo, não é perder tempo».[190]
194. Na política, há lugar também para amar com ternura. «Em que
consiste a ternura? No amor, que se torna próximo e concreto. É um movimento
que brota do coração e chega aos olhos, aos ouvidos e às mãos. (...) A ternura
é o caminho que percorreram os homens e as mulheres mais corajosos e fortes».[191] No
meio da atividade política, «os mais pequeninos, frágeis e pobres devem
enternecer-nos: eles têm o “direito” de arrebatar a nossa alma, o nosso
coração. Sim, eles são nossos irmãos e, como tais, devemos amá-los e
tratá-los».[192]
195. Isto ajuda-nos a reconhecer que nem sempre se trata de obter
grandes resultados, que às vezes não são possíveis. Na atividade política, é
preciso recordar-se de que «independentemente da aparência, cada um é
imensamente sagrado e merece o nosso afeto e a nossa dedicação. Por isso, se
consigo ajudar uma só pessoa a viver melhor, isso já justifica o dom da minha
vida. É maravilhoso ser povo fiel de Deus. E ganhamos plenitude, quando
derrubamos os muros e o coração se enche de rostos e de nomes!»[193] Os
grandes objetivos, sonhados nas estratégias, só em parte se alcançam. Mas, sem
olhar a isso, quem ama e deixou de entender a política como uma mera busca de
poder «está seguro de que não se perde nenhuma das suas obras feitas com amor,
não se perde nenhuma das suas preocupações sinceras com os outros, não se perde
nenhum ato de amor a Deus, não se perde nenhuma das suas generosas fadigas, não
se perde nenhuma dolorosa paciência. Tudo isto circula pelo mundo como uma
força de vida».[194]
196. Por outro lado, é grande nobreza ser capaz de desencadear
processos cujos frutos serão colhidos por outros, com a esperança colocada na
força secreta do bem que se semeia. Ao amor, a boa política une a esperança, a
confiança nas reservas de bem que, apesar de tudo, existem no coração do povo.
Por isso, «a vida política autêntica, que se funda no direito e num diálogo
leal entre os sujeitos, renova-se com a convicção de que cada mulher, cada
homem e cada geração encerram em si uma promessa que pode irradiar novas
energias relacionais, intelectuais, culturais e espirituais».[195]
197. Vista desta maneira, a política é mais nobre do que a aparência,
o marketing, as diferentes formas de maquilhagem mediática. Tudo isto semeia
apenas divisão, inimizade e um ceticismo desolador incapaz de apelar para um
projeto comum. Ao pensar no futuro, alguns dias as perguntas devem ser: «Para
quê? Para onde estou realmente apontando?» Passados alguns anos, ao refletir
sobre o próprio passado, a pergunta não será: «Quantos me aprovaram, quantos
votaram em mim, quantos tiveram uma imagem positiva de mim?» As perguntas,
talvez dolorosas, serão: «Quanto amor coloquei no meu trabalho? Em que fiz
progredir o povo? Que marcas deixei na vida da sociedade? Que laços reais
construí? Que forças positivas desencadeei? Quanta paz social semeei? Que
produzi no lugar que me foi confiado?»
Capítulo VI
DIÁLOGO E AMIZADE SOCIAL
198. Aproximar-se, expressar-se, ouvir-se, olhar-se, conhecer-se,
esforçar-se por entender-se, procurar pontos de contacto: tudo isto se resume
no verbo «dialogar». Para nos encontrar e ajudar mutuamente, precisamos de
dialogar. Não é necessário dizer para que serve o diálogo; é suficiente pensar
como seria o mundo sem o diálogo paciente de tantas pessoas generosas, que
mantiveram unidas famílias e comunidades. O diálogo perseverante e corajoso não
faz notícia como as desavenças e os conflitos; e contudo, de forma discreta mas
muito mais do que possamos notar, ajuda o mundo a viver melhor.
O diálogo social para
uma nova cultura
199. Alguns tentam fugir da realidade, refugiando-se em mundos privados,
enquanto outros a enfrentam com violência destrutiva, mas «entre a indiferença
egoísta e o protesto violento, há uma opção sempre possível: o diálogo. O
diálogo entre as gerações, o diálogo no povo, porque todos somos povo, a
capacidade de dar e receber, permanecendo abertos à verdade. Um país cresce
quando dialogam de modo construtivo as suas diversas riquezas culturais: a
cultura popular, a cultura universitária, a cultura juvenil, a cultura
artística e a cultura tecnológica, a cultura económica e a cultura da família,
e a cultura dos meios de comunicação».[196]
200. Muitas vezes confunde-se o diálogo com algo muito diferente: uma
troca febril de opiniões nas redes sociais, muitas vezes pilotada por uma
informação mediática nem sempre fiável. Não passam de monólogos que avançam em
paralelo, talvez impondo-se à atenção dos outros pelo seu tom alto e agressivo.
Mas os monólogos não empenham a ninguém, a ponto de os seus conteúdos
aparecerem, não raro, oportunistas e contraditórios.
201. A difusão altissonante de factos e reivindicações nos media,
na realidade o que faz muitas vezes é obstruir as possibilidades do diálogo,
pois permite a cada um manter, intactas e sem variantes, as próprias ideias,
interesses e opções, desculpando-se com os erros alheios. Predomina o costume
de denegrir rapidamente o adversário, aplicando-lhe atributos humilhantes, em
vez de se enfrentarem num diálogo aberto e respeitoso, onde se procure alcançar
uma síntese que vá mais além. O pior é que esta linguagem, habitual no contexto
mediático duma campanha política, generalizou-se de tal maneira que a usam
diariamente todos. Com frequência, o debate é manipulado por determinados
interesses detentores de maior poder que procuram desonestamente inclinar a
opinião pública a seu favor. E não me refiro apenas ao governo vigente, porque
um tal poder manipulador pode ser económico, político, mediático, religioso ou
de qualquer outro género. Às vezes, é justificado ou desculpado quando a sua
dinâmica corresponde aos próprios interesses económicos ou ideológicos, mas
mais cedo ou mais tarde volta-se contra esses mesmos interesses.
202. A falta de diálogo supõe que ninguém, nos diferentes setores,
está preocupado com o bem comum, mas com obter as vantagens que o poder lhe
proporciona ou, na melhor das hipóteses, com impor o seu próprio modo de
pensar. Assim a conversação reduzir-se-á a meras negociações para que cada um
possa agarrar todo o poder e as maiores vantagens possíveis, sem uma busca
conjunta que gere bem comum. Os heróis do futuro serão aqueles que souberem
quebrar esta lógica morbosa e, ultrapassando as conveniências pessoais, decidam
sustentar respeitosamente uma palavra densa de verdade. Queira Deus que estes
heróis se estejam gerando silenciosamente no coração da nossa sociedade.
Construir juntos
203. O diálogo social autêntico pressupõe a capacidade de respeitar o
ponto de vista do outro, aceitando como possível que contenha convicções ou
interesses legítimos. A partir da própria identidade, o outro tem algo para
dar, e é desejável que aprofunde e exponha a sua posição para que o debate
público seja ainda mais completo. Sem dúvida, quando uma pessoa ou um grupo é
coerente com o que pensa, adere firmemente a valores e convicções e desenvolve
um pensamento, isto irá de uma maneira ou outra beneficiar a sociedade; mas só
se verifica realmente na medida em que o referido desenvolvimento se realizar
em diálogo e na abertura aos outros. Com efeito, «num verdadeiro espírito de
diálogo, nutre-se a capacidade de entender o sentido daquilo que o outro diz e
faz, embora não se possa assumi-lo como uma convicção própria. Deste modo
torna-se possível ser sincero, sem dissimular o que acreditamos, nem deixar de
dialogar, procurar pontos de contacto e sobretudo trabalhar e lutar juntos».[197] O
debate público, se verdadeiramente der espaço a todos e não manipular nem
ocultar informações, é um estímulo constante que permite alcançar de forma mais
adequada a verdade ou, pelo menos, exprimi-la melhor. Impede que os vários
setores se instalem, cómodos e autossuficientes, na sua maneira de ver as
coisas e nos seus interesses limitados. Pensemos que «as diferenças são
criativas, criam tensão e, na resolução duma tensão, está o progresso da
humanidade».[198]
204. Atualmente há a convicção de que, além dos progressos
científicos especializados, é necessária a comunicação interdisciplinar, uma
vez que a realidade é uma só, embora possa ser abordada sob distintas
perspetivas e com diferentes metodologias. Não se deve ocultar o risco de um
progresso científico ser considerado a única abordagem possível para se entender
um aspeto da vida, da sociedade e do mundo. Ao contrário, um investigador que
avança frutuosamente na sua análise, mas está de igual modo disposto a
reconhecer outras dimensões da realidade que investiga, graças ao trabalho
doutras ciências e conhecimentos, abre-se para conhecer a realidade de maneira
mais íntegra e plena.
205. Neste mundo globalizado, «os mass media podem
ajudar a sentir-nos mais próximos uns dos outros; a fazer-nos perceber um
renovado sentido de unidade da família humana, que impele à solidariedade e a
um compromisso sério para uma vida mais digna. (…) Podem ajudar-nos nisso,
especialmente nos nossos dias em que as redes da comunicação humana atingiram
progressos sem precedentes. Particularmente a internet pode
oferecer maiores possibilidades de encontro e de solidariedade entre todos; e
isto é uma coisa boa, é um dom de Deus».[199] Mas
é necessário verificar, continuamente, que as formas atuais de comunicação nos
orientem efetivamente para o encontro generoso, a busca sincera da verdade
íntegra, o serviço, a aproximação dos últimos e o compromisso de construir o
bem comum. Ao mesmo tempo, como indicaram os bispos da Austrália, «não podemos
aceitar um mundo digital projetado para explorar as nossas fraquezas e tirar
fora o pior das pessoas».[200]
A base dos consensos
206. O relativismo não é a solução. Sob o véu duma presumível
tolerância, acaba-se por facilitar que os valores morais sejam interpretados
pelos poderosos segundo as conveniências da hora. Se, em última análise, «não
há verdades objetivas nem princípios estáveis, fora da satisfação das
aspirações próprias e das necessidades imediatas, (…) não podemos pensar que os
programas políticos ou a força da lei sejam suficientes (…). Quando é a cultura
que se corrompe deixando de reconhecer qualquer verdade objetiva ou quaisquer
princípios universalmente válidos, as leis só se poderão entender como
imposições arbitrárias e obstáculos a evitar».[201]
207. É possível prestar atenção à verdade, buscar a verdade que
corresponde à nossa realidade mais profunda? Que é a lei sem a convicção,
alcançada através dum longo caminho de reflexão e sabedoria, de que cada ser
humano é sacro e inviolável? Para que uma sociedade tenha futuro, é preciso ter
maturado um vivo respeito pela verdade da dignidade humana, à qual nos
submetemos. Então abster-se-á de matar alguém, não apenas para evitar o
desprezo social e o peso da lei, mas por convicção. É uma verdade irrenunciável
que reconhecemos com a razão e aceitamos com a consciência. Uma sociedade é
nobre e respeitável, nomeadamente porque cultiva a busca da verdade e pelo seu
apego às verdades fundamentais.
208. Temos de nos exercitar em desmascarar as várias modalidades de
manipulação, deformação e ocultamento da verdade nas esferas pública e privada.
O que chamamos «verdade» não é só a comunicação de factos operada pelo
jornalismo. É, antes de mais nada, a busca dos fundamentos mais sólidos que
estão na base das nossas opções e também das nossas leis. Isto implica aceitar
que a inteligência humana pode ir além das conveniências do momento atual e captar
algumas verdades que não mudam, que eram verdade antes de nós e sempre o serão.
Indagando sobre a natureza humana, a razão descobre valores que são universais,
porque derivam dela.
209. Caso contrário, não poderia porventura suceder que os direitos
humanos fundamentais, hoje considerados invioláveis, acabassem negados pelos
poderosos de turno, depois de terem obtido o «consenso» duma população
adormecida e amedrontada? Nem seria suficiente um mero consenso entre os vários
povos, porque igualmente manipulável. Existem já provas abundantes de todo o
bem que somos capazes de realizar, mas ao mesmo tempo devemos reconhecer a
capacidade de destruição que existe em nós. Não será, este individualismo
indiferente e desalmado em que caímos, resultado também da preguiça de buscar
os valores mais altos, que estão para além das necessidades momentâneas? Ao
relativismo junta-se o risco de que o poderoso ou o mais hábil consiga impor
uma suposta verdade. Pelo contrário, «diante das normas morais que proíbem o
mal intrínseco, não existem privilégios ou exceções para ninguém. Ser o dono do
mundo ou o último “miserável” sobre a face da terra, não faz diferença alguma:
perante as exigências morais, todos somos absolutamente iguais».[202]
210. Um fenómeno atual, que nos está a arrastar para uma lógica
perversa e vazia, é a assimilação da ética e da política à física. Não existem
o bem e o mal em si mesmos, mas apenas um cálculo de vantagens e desvantagens.
O deslocamento da razão moral traz como consequência que o direito não se pode
referir a uma conceção fundamental de justiça, mas torna-se um espelho das
ideias dominantes. Entramos aqui numa degradação: vai-se «nivelando por baixo»
mediante um consenso superficial e comprometedor. Assim, em última análise,
triunfa a lógica da força.
O consenso e a verdade
211. Numa sociedade pluralista, o diálogo é o caminho mais adequado
para se chegar a reconhecer aquilo que sempre deve ser afirmado e respeitado e
que ultrapassa o consenso ocasional. Falamos de um diálogo que precisa de ser
enriquecido e iluminado por razões, por argumentos racionais, por uma variedade
de perspetivas, por contribuições de diversos conhecimentos e pontos de vista,
e que não exclui a convicção de que é possível chegar a algumas verdades
fundamentais que devem e deverão ser sempre defendidas. Aceitar que há alguns
valores permanentes, embora nem sempre seja fácil reconhecê-los, confere
solidez e estabilidade a uma ética social. Mesmo quando os reconhecemos e
assumimos através do diálogo e do consenso, vemos que estes valores basilares
estão para além de qualquer consenso, reconhecemo-los como valores transcendentes
aos nossos contextos e nunca negociáveis. Poderá crescer a nossa compreensão do
seu significado e importância – e, neste sentido, o consenso é uma realidade
dinâmica –, mas, em si mesmos, são apreciados como estáveis pelo seu sentido
intrínseco.
212. Se algo permanece sempre conveniente para o bom funcionamento da
sociedade, não será porque atrás disso há uma verdade perene que a inteligência
pode captar? Na própria realidade do ser humano e da sociedade, na sua natureza
íntima, há uma série de estruturas basilares que sustentam o seu
desenvolvimento e sobrevivência. Daí derivam certas exigências que podem ser
descobertas através do diálogo, embora não sejam construídas em sentido estrito
pelo consenso. O facto de certas normas serem indispensáveis para a própria
vida social é um indício externo de como elas sejam algo intrinsecamente bom.
Portanto, não é necessário contrapor a conveniência social, o consenso e a
realidade duma verdade objetiva. As três coisas podem unir-se harmoniosamente,
quando as pessoas, através do diálogo, têm a coragem de levar a fundo uma
questão.
213. Se devemos em qualquer situação respeitar a dignidade dos
outros, isto significa que esta não é uma invenção nem uma suposição nossa, mas
que existe realmente neles um valor superior às coisas materiais e independente
das circunstâncias e exige um tratamento distinto. Que todo o ser humano possui
uma dignidade inalienável é uma verdade que corresponde à natureza humana,
independentemente de qualquer transformação cultural. Por isso o ser humano
possui a mesma dignidade inviolável em todo e qualquer período da história, e
ninguém pode sentir-se autorizado, pelas circunstâncias, a negar esta convicção
nem a agir em sentido contrário. Assim, a inteligência pode perscrutar a
realidade das coisas, através da reflexão, da experiência e do diálogo, para
reconhecer nessa realidade que a transcende a base de certas exigências morais
universais.
214. Aos agnósticos, este fundamento poder-lhes-á aparecer como
suficiente para conferir aos princípios éticos basilares e não negociáveis uma
validade universal de tal forma firme e estável que consiga impedir novas
catástrofes. Para os crentes, a natureza humana, fonte de princípios éticos,
foi criada por Deus, que em última análise confere um fundamento sólido a estes
princípios.[203] Isto
não estabelece um fixismo ético nem abre a estrada à imposição dum sistema
moral, uma vez que os princípios morais fundamentais e universalmente válidos
podem dar lugar a várias normativas práticas. Por isso, fica sempre um espaço
para o diálogo.
Uma nova cultura
215. «A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro na
vida».[204] Já
várias vezes convidei a fazer crescer uma cultura do encontro que supere as
dialéticas que colocam um contra o outro. É um estilo de vida que tende a
formar aquele poliedro que tem muitas faces, muitos lados, mas todos compõem
uma unidade rica de matizes, porque «o todo é superior à parte».[205] O
poliedro representa uma sociedade onde as diferenças convivem integrando-se,
enriquecendo-se e iluminando-se reciprocamente, embora isso envolva discussões
e desconfianças. Na realidade, de todos se pode aprender alguma coisa, ninguém
é inútil, ninguém é supérfluo. Isto implica incluir as periferias. Quem vive
nelas tem outro ponto de vista, vê aspetos da realidade que não se descobrem a
partir dos centros de poder onde se tomam as decisões mais determinantes.
O encontro feito cultura
216. A palavra «cultura» indica algo que penetrou no povo, nas suas
convicções mais profundas e no seu estilo de vida. Quando falamos duma
«cultura» no povo, trata-se de algo mais que uma ideia ou uma abstração; inclui
as aspirações, o entusiasmo e, em última análise, um modo de viver que
carateriza aquele grupo humano. Assim, falar de «cultura do encontro» significa
que nos apaixona, como povo, querer encontrar-nos, procurar pontos de contacto,
lançar pontes, projetar algo que envolva a todos. Isto tornou-se uma aspiração
e um estilo de vida. O sujeito desta cultura é o povo, não um setor da
sociedade que tenta manter tranquilo o resto com recursos profissionais e
mediáticos.
217. A paz social é laboriosa, artesanal. Seria mais fácil conter as
liberdades e as diferenças com um pouco de astúcia e algumas compensações; mas
esta paz seria superficial e frágil, não o fruto duma cultura do encontro que a
sustente. Integrar as realidades diferentes é muito mais difícil e lento,
embora seja a garantia duma paz real e sólida. Isto não se consegue agrupando
só os puros, porque «até mesmo as pessoas que possam ser criticadas pelos seus
erros, têm algo a oferecer que não se deve perder».[206] Nem
consiste numa paz que surja acalmando as reivindicações sociais ou impedindo-as
de criar confusão, pois não é «um consenso de escritório nem uma paz efémera
para uma feliz minoria».[207] O
que conta é gerar processos de encontro, processos que possam
construir um povo capaz de recolher as diferenças. Armemos os nossos filhos com
as armas do diálogo! Ensinemos-lhes a boa batalha do encontro!
O prazer de reconhecer o
outro
218. Isto implica o hábito de reconhecer, ao outro, o direito de ser
ele próprio e de ser diferente. A partir deste reconhecimento feito cultura,
torna-se possível a criação dum pacto social. Sem este reconhecimento, surgem
maneiras subtis de fazer com que o outro perca todo o seu significado, se torne
irrelevante, fazer com que na sociedade não lhe seja reconhecido qualquer
valor. Por trás da repulsa de certas formas visíveis de violência, muitas vezes
esconde-se outra violência mais dissimulada: a daqueles que desprezam o
diferente, sobretudo quando as suas reivindicações prejudicam dalguma maneira
os próprios interesses.
219. Quando uma parte da sociedade pretende apropriar-se de tudo
aquilo que o mundo oferece, como se os pobres não existissem, virá o momento em
que isso terá as suas consequências. Ignorar a existência e os direitos dos
outros provoca, mais cedo ou mais tarde, alguma forma de violência, muitas
vezes inesperada. Os sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade podem
permanecer no nível de meras formalidades, porque não são efetivamente para
todos. Sendo assim, não se trata apenas de procurar um encontro entre aqueles
que detêm várias formas de poder económico, político ou académico; um efetivo
encontro social coloca em verdadeiro diálogo as grandes formas culturais que
representam a maioria da população. Muitas vezes, as boas propostas não são
assumidas pelos setores mais pobres, porque se apresentam com uma roupagem
cultural que não é a deles e com a qual não podem sentir-se identificados. Por
conseguinte, um pacto social realista e inclusivo deve ser também um «pacto
cultural», que respeite e assuma as diversas visões do mundo, as culturas e os
estilos de vida que coexistem na sociedade.
220. Por exemplo, os povos nativos não são contra o progresso, embora
tenham uma ideia diferente de progresso, frequentemente mais humanista que a da
cultura moderna dos povos desenvolvidos. Não é uma cultura orientada para
benefício daqueles que detêm o poder, daqueles que precisam de criar uma
espécie de paraíso sobre a terra. A intolerância e o desprezo perante as
culturas populares indígenas são uma verdadeira forma de violência, própria dos
especialistas em ética sem bondade que vivem julgando os outros. Mas nenhuma
mudança autêntica, profunda e estável é possível, se não se realizar a partir
das várias culturas, principalmente dos pobres. Um pacto cultural pressupõe que
se renuncie a compreender de maneira monolítica a identidade dum lugar, e exige
que se respeite a diversidade, oferecendo-lhe caminhos de promoção e integração
social.
221. Este pacto implica também aceitar a possibilidade de ceder algo
para o bem comum. Ninguém será capaz de possuir toda a verdade nem satisfazer a
totalidade dos seus desejos, porque uma tal pretensão levaria a querer destruir
o outro, negando-lhe os seus direitos. A busca duma falsa tolerância deve dar
lugar ao realismo dialogante por parte de quem pensa que deve ser fiel aos seus
princípios, mas reconhecendo que o outro também tem o direito de procurar ser
fiel aos dele. Tal é o autêntico reconhecimento do outro, que só o amor torna
possível e que significa colocar-se no lugar do outro para descobrir o que há
de autêntico ou pelo menos de compreensível no meio das suas motivações e
interesses.
Recuperar a amabilidade
222. O individualismo consumista provoca muitos abusos. Os outros
tornam-se meros obstáculos para a agradável tranquilidade própria e, assim,
acaba-se por tratá-los como incómodos; e a agressividade aumenta. Isto
acentua-se e atinge níveis exasperantes em períodos de crise, situações
catastróficas, momentos difíceis, quando aflora o espírito do «salve-se quem
puder». Contudo, ainda é possível optar pelo cultivo da amabilidade; há pessoas
que o conseguem, tornando-se estrelas no meio da escuridão.
223. São Paulo designa um fruto do Espírito Santo com a palavra
grega chrestotes (Gal 5, 22), que expressa um
estado de ânimo não áspero, rude, duro, mas benigno, suave, que sustenta e
conforta. A pessoa que possui esta qualidade ajuda os outros, para que a sua
existência seja mais suportável, sobretudo quando sobrecarregados com o peso
dos seus problemas, urgências e angústias. É um modo de tratar os outros, que
se manifesta de diferentes formas: amabilidade no trato, cuidado para não
magoar com as palavras ou os gestos, tentativa de aliviar o peso dos outros.
Supõe «dizer palavras de incentivo, que reconfortam, consolam, fortalecem,
estimulam», em vez de «palavras que humilham, angustiam, irritam, desprezam».[208]
224. A amabilidade é uma libertação da crueldade que às vezes penetra
nas relações humanas, da ansiedade que não nos deixa pensar nos outros, da
urgência distraída que ignora que os outros também têm direito de ser felizes.
Hoje raramente se encontram tempo e energias disponíveis para se demorar a
tratar bem os outros, para dizer «com licença», «desculpe», «obrigado». Contudo
de vez em quando verifica-se o milagre duma pessoa amável, que deixa de lado as
suas preocupações e urgências para prestar atenção, oferecer um sorriso, dizer
uma palavra de estímulo, possibilitar um espaço de escuta no meio de tanta
indiferença. Este esforço, vivido dia a dia, é capaz de criar aquela
convivência sadia que vence as incompreensões e evita os conflitos. O exercício
da amabilidade não é um detalhe insignificante nem uma atitude superficial ou
burguesa. Dado que pressupõe estima e respeito, quando se torna cultura numa
sociedade, transforma profundamente o estilo de vida, as relações sociais, o
modo de debater e confrontar as ideias. Facilita a busca de consensos e abre
caminhos onde a exasperação destrói todas as pontes.
Capítulo VII
PERCURSOS DUM NOVO ENCONTRO
225. Em muitas partes do mundo, fazem falta percursos de paz que
levem a cicatrizar as feridas, há necessidade de artesãos de paz prontos a
gerar, com inventiva e ousadia, processos de cura e de um novo encontro.
Recomeçar a partir da
verdade
226. Novo encontro não significa voltar ao período anterior aos
conflitos. Com o tempo, todos mudamos. A tribulação e os confrontos
transformaram-nos. Além disso, já não há espaço para diplomacias vazias,
dissimulações, discursos com duplo sentido, ocultamentos, bons modos que
escondem a realidade. Os que se defrontaram duramente falam a partir da
verdade, nua e crua. Precisam de aprender a cultivar uma memória penitencial,
capaz de assumir o passado para libertar o futuro das próprias insatisfações,
confusões ou projeções. Só da verdade histórica dos factos poderá nascer o
esforço perseverante e duradouro para se compreenderem mutuamente e tentar uma
nova síntese para o bem de todos. De facto, «o processo de paz é um empenho que
se prolonga no tempo. É um trabalho paciente de busca da verdade e da justiça,
que honra a memória das vítimas e abre, passo a passo, para uma esperança
comum, mais forte que a vingança».[209] Como
disseram os bispos do Congo, a propósito dum conflito que não cessa de
reacender-se, «os acordos de paz no papel, nunca serão suficientes; será
preciso ir mais longe, integrando a exigência de verdade sobre as origens desta
crise recorrente. O povo tem direito de saber o que aconteceu».[210]
227. Com efeito, «a verdade é uma companheira inseparável da justiça
e da misericórdia. Se, por um lado, são essenciais – as três todas juntas –
para construir a paz, por outro, cada uma delas impede que as restantes sejam
adulteradas (...). De facto, a verdade não deve levar à vingança, mas antes à
reconciliação e ao perdão. A verdade é contar às famílias dilaceradas pela dor
o que aconteceu aos seus parentes desaparecidos. A verdade é confessar o que
aconteceu aos menores recrutados pelos agentes de violência. A verdade é
reconhecer o sofrimento das mulheres vítimas de violência e de abusos. (...)
Cada ato de violência cometido contra um ser humano é uma ferida na carne da
humanidade; cada morte violenta “diminui-nos” como pessoas. (...) A violência
gera mais violência, o ódio gera mais ódio, e a morte mais morte. Temos de
quebrar esta corrente que aparece como inelutável».[211]
A arquitetura e o
artesanato da paz
228. O percurso para a paz não implica homogeneizar a sociedade, mas
permite-nos trabalhar juntos. Pode unir muitos nas pesquisas comuns, onde todos
ganham. Perante um certo objetivo comum, poder-se-á contribuir com diferentes
propostas técnicas, distintas experiências, e trabalhar em prol do bem comum. É
preciso procurar identificar bem os problemas que atravessa uma sociedade, para
aceitar que existem diferentes maneiras de encarar as dificuldades e
resolvê-las. O caminho para uma melhor convivência implica sempre reconhecer a
possibilidade de que o outro contribua com uma perspetiva legítima, pelo menos
em parte, algo que possa ser recuperado, mesmo que se tenha equivocado ou tenha
agido mal. Porque «o outro nunca há de ser circunscrito àquilo que pôde ter
dito ou feito, mas deve ser considerado pela promessa que traz em si mesmo»,[212] uma
promessa que deixa sempre um lampejo de esperança.
229. Como ensinaram os bispos da África do Sul, a verdadeira
reconciliação alcança-se de maneira proativa, «formando uma nova sociedade
baseada no serviço aos outros, e não no desejo de dominar; uma sociedade
baseada na partilha do que se possui com os outros, e não na luta egoísta de
cada um pela maior riqueza possível; uma sociedade na qual o valor de estar
juntos como seres humanos é, em última análise, mais importante do que qualquer
grupo menor, seja ele a família, a nação, a etnia ou a cultura».[213] E
os bispos da Coreia do Sul destacaram que uma verdadeira paz «só se pode
alcançar quando lutamos pela justiça através do diálogo, buscando a
reconciliação e o desenvolvimento mútuo».[214]
230. O árduo esforço por superar o que nos divide, sem perder a
identidade de cada um, pressupõe que em todos permaneça vivo um sentimento
basilar de pertença. Porque «a nossa sociedade ganha, quando cada pessoa, cada
grupo social se sente verdadeiramente de casa. Numa família, os
pais, os avós, os filhos são de casa; ninguém fica excluído. Se alguém tem uma
dificuldade, mesmo grave, ainda que seja por culpa dele, os outros correm em
sua ajuda, apoiam-no; a sua dor é de todos. (…) Nas famílias, todos contribuem
para o projeto comum, todos trabalham para o bem comum, mas sem anular o
indivíduo; pelo contrário, sustentam-no, promovem-no. Podem brigar entre si,
mas há algo que não se move: este laço familiar. As brigas de família tornam-se
reconciliações mais tarde. As alegrias e as penas de cada um são assumidas por
todos. Isto sim é ser família! Oh, se pudéssemos conseguir ver o adversário
político ou o vizinho de casa com os mesmos olhos com que vemos os filhos, esposas,
maridos, pais ou mães, como seria bom! Amamos a nossa sociedade, ou continua a
ser algo distante, algo anónimo, que não nos corresponde, não nos insere, não
nos compromete?»[215]
231. Muitas vezes há grande necessidade de negociar e, assim,
desenvolver percursos concretos para a paz. Mas os processos efetivos duma paz
duradoura são, antes de mais nada, transformações artesanais realizadas pelos
povos, onde cada pessoa pode ser um fermento eficaz com o seu estilo de vida
diária. As grandes transformações não são construídas à escrivaninha ou no
escritório. Por isso, «cada qual desempenha um papel fundamental, num único
projeto criador, para escrever uma nova página da história, uma página cheia de
esperança, cheia de paz, cheia de reconciliação».[216] Existe
uma «arquitetura» da paz, na qual intervêm as várias instituições da sociedade,
cada uma dentro de sua competência, mas há também um «artesanato» da paz que
nos envolve a todos. A partir de distintos processos de paz que se desenvolvem
em vários lugares do mundo, «aprendemos que estes caminhos de pacificação, de
primazia da razão sobre a vingança, de delicada harmonia entre a política e o
direito, não podem prescindir das pessoas implicadas nos processos. Não basta o
desenho de quadros normativos e acordos institucionais entre grupos políticos
ou económicos de boa vontade (...). Além disso, é sempre enriquecedor
incorporar nos nossos processos de paz a experiência de setores que, em muitas
ocasiões, foram deixados de lado, para que sejam precisamente as comunidades a
revestir os processos de memória coletiva».[217]
232. Nunca está terminada a construção da paz social num país, mas é
«uma tarefa que não dá tréguas e exige o compromisso de todos. Uma obra que nos
pede para não esmorecermos no esforço por construir a unidade da nação e –
apesar dos obstáculos, das diferenças e das diversas abordagens sobre o modo
como conseguir a convivência pacífica – persistirmos na labuta por favorecer a
cultura do encontro que exige que, no centro de toda a ação política, social e
económica, se coloque a pessoa humana, a sua sublime dignidade e o respeito
pelo bem comum. Que este esforço nos faça esquivar de toda a tentação de
vingança e busca de interesses apenas particulares e a curto prazo».[218] As
manifestações públicas violentas, de um lado ou do outro, não ajudam a
encontrar vias de saída, sobretudo porque, quando se incentivam – como bem
assinalaram os bispos da Colômbia – «as mobilizações dos cidadãos, nem sempre
aparecem claras as origens e objetivos das mesmas; não faltam formas de
manipulação política e apropriações a favor de interesses particulares».[219]
Sobretudo com os últimos
233. A promoção da amizade social implica não só a aproximação entre
grupos sociais distanciados a partir dum período conflituoso da história, mas
também a busca dum renovado encontro com os setores mais pobres e vulneráveis.
A paz «não é apenas ausência de guerra, mas o empenho incansável –
especialmente daqueles que ocupamos um cargo de maior responsabilidade – de
reconhecer, garantir e reconstruir concretamente a dignidade, tantas vezes
esquecida ou ignorada, de irmãos nossos, para que possam sentir-se os
principais protagonistas do destino da própria nação».[220]
234. Muitas vezes, os últimos da sociedade foram ofendidos com
generalizações injustas. Se às vezes os mais pobres e os descartados reagem com
atitudes que parecem antissociais, é importante compreender que, em muitos
casos, tais reações têm a ver com uma história de desprezo e falta de inclusão
social. Como ensinam os bispos latino-americanos, «só a proximidade que nos faz
amigos nos permite apreciar profundamente os valores dos pobres de hoje, seus
legítimos desejos e seu modo próprio de viver a fé. A opção pelos pobres deve
conduzir-nos à amizade com os pobres».[221]
235. Aqueles que pretendem pacificar uma sociedade não devem esquecer
que a desigualdade e a falta de desenvolvimento humano integral impedem que se
gere a paz. Na verdade, «sem igualdade de oportunidades, as várias formas de
agressão e de guerra encontrarão um terreno fértil que, mais cedo ou mais
tarde, há de provocar a explosão. Quando a sociedade – local, nacional ou
mundial – abandona na periferia uma parte de si mesma, não há programas
políticos, nem forças da ordem ou serviços secretos que possam garantir
indefinidamente a tranquilidade».[222] Se
se trata de recomeçar, sempre há de ser a partir dos últimos.
O valor e o significado
do perdão
236. Alguns preferem não falar de reconciliação, porque pensam que o
conflito, a violência e as ruturas fazem parte do funcionamento normal duma
sociedade. De facto, em qualquer grupo humano, há lutas de poder mais ou menos
subtis entre vários setores. Outros defendem que dar lugar ao perdão equivale a
ceder o espaço próprio para que outros dominem a situação. Por isso, consideram
que é melhor manter um jogo de poder que permita assegurar um equilíbrio de
forças entre os diferentes grupos. Outros consideram que a reconciliação seja
empreendimento de fracos, que não são capazes dum diálogo em profundidade e por
isso optam por escapar dos problemas escondendo as injustiças. Incapazes de
enfrentar os problemas, preferem uma paz aparente.
O conflito inevitável
237. O perdão e a reconciliação são temas de grande relevo no
cristianismo e, com várias modalidades, noutras religiões. O risco reside em
não entender adequadamente as convicções dos crentes e apresentá-las de tal
modo que acabem por alimentar o fatalismo, a inércia ou a injustiça, e, por
outro lado, a intolerância e a violência.
238. Jesus Cristo nunca convidou a fomentar a violência ou a
intolerância. Ele próprio condenava abertamente o uso da força para se impor
aos outros: «Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e
que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós» (Mt 20,
25-26). Por outro lado, o Evangelho pede para perdoar «setenta vezes sete» (Mt 18,
22), dando o exemplo do servo sem compaixão, que foi perdoado mas, por sua vez,
mostrou-se incapaz de perdoar aos outros (cf. Mt 18, 23-35).
239. Se lermos outros textos do Novo Testamento, podemos notar que
realmente as comunidades primitivas, imersas num mundo pagão repleto de
corrupção e aberrações, viviam animadas por um sentido de paciência,
tolerância, compreensão. A este respeito, são muito claros alguns textos:
convida-se a corrigir os adversários «com suavidade» (2 Tim 2, 25);
ou exorta-se a «que não digam mal de ninguém, nem sejam conflituosos, mas sejam
afáveis, mostrando sempre amabilidade para com todos os homens. Pois também nós
éramos outrora insensatos» (Tit 3, 2-3). O livro dos Atos dos
Apóstolos mostra que os discípulos, perseguidos por algumas autoridades,
«tinham a simpatia de todo o povo» (2, 47; cf. 4, 21.33; 5, 13).
240. Entretanto, ao refletirmos sobre o perdão, a paz e a concórdia
social, deparamo-nos com um texto de Jesus Cristo que nos surpreende: «Não
penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada.
Porque vim separar o filho do seu pai, a filha da sua mãe e a nora da sua
sogra; de tal modo que os inimigos do homem serão os seus familiares» (Mt 10,
34-36). É importante situá-lo no contexto do capítulo onde está inserido. Aqui
vê-se claramente que o tema em questão é o da fidelidade à própria opção, sem
ter vergonha, ainda que isso traga contrariedades e mesmo que os entes queridos
se oponham a tal opção. Portanto, não convida a procurar conflitos, mas
simplesmente a suportar o conflito inevitável, para que o respeito humano não
leve a faltar à fidelidade em nome duma suposta paz familiar ou social. São
João Paulo II disse que a Igreja «não pretende condenar toda e qualquer forma
de conflitualidade social. A Igreja sabe bem que, ao longo da história, os
conflitos de interesse entre diversos grupos sociais surgem inevitavelmente e
que, perante eles, o cristão deve muitas vezes tomar posição decidida e
coerentemente».[223]
As lutas legítimas e o
perdão
241. Não se trata de propor um perdão renunciando aos próprios
direitos perante um poderoso corrupto, um criminoso ou alguém que degrada a
nossa dignidade. Somos chamados a amar a todos, sem exceção, mas amar um
opressor não significa consentir que continue a ser tal; nem levá-lo a pensar
que é aceitável o que faz. Pelo contrário, amá-lo corretamente é procurar, de
várias maneiras, que deixe de oprimir, tirar-lhe o poder que não sabe usar e
que o desfigura como ser humano. Perdoar não significa permitir que continuem a
espezinhar a própria dignidade e a do outro, ou deixar que um criminoso
continue a fazer mal. Quem sofre injustiça tem de defender vigorosamente os
seus direitos e os da sua família, precisamente porque deve guardar a dignidade
que lhes foi dada, uma dignidade que Deus ama. Se um delinquente cometeu um
delito contra mim ou contra um ente querido, ninguém me proíbe de exigir
justiça e me acautelar para que essa pessoa – ou qualquer outra – não volte a
lesar-me nem cause a outros o mesmo dano. Compete-me fazê-lo, e o perdão não só
não anula esta necessidade, mas reclama-a.
242. O importante é não o fazer para alimentar um ódio que faz mal à
alma da pessoa e à alma do nosso povo, ou por uma necessidade morbosa
desencadeando uma série de vinganças. Ninguém alcança a paz interior nem se
reconcilia com a vida dessa maneira. A verdade é que «nenhuma família, nenhum
grupo de vizinhos ou uma etnia e menos ainda um país tem futuro, se o motor que
os une, congrega e cobre as diferenças é a vingança e o ódio. Não podemos
pôr-nos de acordo e unir-nos para nos vingarmos, para fazermos àquele que foi
violento o mesmo que ele nos fez, para planearmos ocasiões de retaliação sob
formatos aparentemente legais».[224] Assim
não se ganha nada e, a longo prazo, perde-se tudo.
243. Sem dúvida, «não é tarefa fácil superar a amarga herança de
injustiças, hostilidades e desconfiança deixada pelo conflito. Só se pode
conseguir, superando o mal com o bem (cf. Rm 12, 21) e
cultivando aquelas virtudes que promovem a reconciliação, a solidariedade e a
paz».[225] Deste
modo a bondade, «a quem a faz crescer dentro de si, dá uma consciência
tranquila, uma alegria profunda, mesmo no meio de dificuldades e
incompreensões. E até perante as ofensas sofridas, a bondade não é fraqueza mas
verdadeira força, capaz de renunciar à vingança».[226] É
necessário reconhecer na própria vida que «inclusive aquele juízo duro que
tenho no coração contra o meu irmão ou a minha irmã, a ferida não curada,
aquele mal não perdoado, o rancor que só me faz mal, é uma parte de guerra que
tenho dentro, é um fogo no coração que deve ser apagado a fim de não irromper
num incêndio».[227]
A verdadeira superação
244. Quando os conflitos não se resolvem, mas se escondem ou são
enterrados no passado, há silêncios que podem significar tornar-se cúmplice de
graves erros e pecados. A verdadeira reconciliação não escapa do conflito, mas
alcança-se dentro do conflito, superando-o através do diálogo
e de negociações transparentes, sinceras e pacientes. A luta entre diferentes
setores, «quando livre de inimizades e ódio mútuo, transforma-se pouco a pouco
numa concorrência honesta, fundada no amor da justiça».[228]
245. Várias vezes propus «um princípio que é indispensável para
construir a amizade social: a unidade é superior ao conflito. (...) Não é
apostar no sincretismo ou na absorção de um no outro, mas na resolução num
plano superior que preserva em si as preciosas potencialidades das polaridades
em contraste».[229] Sabemos
bem que, «todas as vezes que aprendemos, como pessoas e comunidades, a olhar
para mais alto do que nós mesmos e os nossos interesses particulares, a
compreensão e o compromisso recíprocos transformam-se em solidariedade; (…) numa
área onde os conflitos, as tensões e mesmo aqueles a quem seria possível
considerar como contrapostos no passado, podem alcançar uma unidade multiforme
que gera nova vida».[230]
A memória
246. De quem sofreu muito de maneira injusta e cruel, não se deve
exigir uma espécie de «perdão social». A reconciliação é um facto pessoal, e
ninguém pode impô-la ao conjunto duma sociedade, embora a deva promover. Na
esfera estritamente pessoal, com uma decisão livre e generosa, alguém pode
renunciar a exigir um castigo (cf. Mt 5, 44-46), mesmo que a
sociedade e a sua justiça o busquem legitimamente. Mas não é possível decretar
uma «reconciliação geral», pretendendo encerrar por decreto as feridas ou
cobrir as injustiças com um manto de esquecimento. Quem se pode arrogar o
direito de perdoar em nome dos outros? É comovente ver a capacidade de perdão
dalgumas pessoas que souberam ultrapassar o dano sofrido, mas também é humano
compreender aqueles que não o podem fazer. Em todo o caso, o que nunca se deve
propor é o esquecimento.
247. A Shoah não deve ser esquecida. É o «símbolo
dos extremos aonde pode chegar a malvadez do homem, quando, atiçado por falsas
ideologias, esquece a dignidade fundamental de cada pessoa, a qual merece
respeito absoluto seja qual for o povo a que pertença e a religião que
professe».[231] Ao
recordá-la, não posso deixar de repetir esta oração: «Lembrai-Vos de nós na
vossa misericórdia. Dai-nos a graça de nos envergonharmos daquilo que, como
homens, fomos capazes de fazer, de nos envergonharmos desta máxima idolatria,
de termos desprezado e destruído a nossa carne, aquela que Vós formastes da
lama, aquela que vivificastes com o vosso sopro de vida. Nunca mais, Senhor,
nunca mais!»[232]
248. Não se devem esquecer os bombardeamentos atómicos de Hiroxima e
Nagasáqui. Uma vez mais, «aqui faço memória de todas as vítimas e inclino-me
perante a força e a dignidade das pessoas que, tendo sobrevivido àqueles
primeiros momentos, suportaram nos seus corpos durante muitos anos os
sofrimentos mais agudos e, nas suas mentes, os germes da morte que continuaram
a consumir a sua energia vital. (…) Não podemos permitir que a atual e as novas
gerações percam a memória do que aconteceu, aquela memória que é garantia e
estímulo para construir um futuro mais justo e fraterno».[233] Também
não devemos esquecer as perseguições, o comércio dos escravos e os massacres
étnicos que se verificaram e verificam em vários países, e tantos outros factos
históricos que nos fazem envergonhar de sermos humanos. Devem ser recordados
sempre, repetidamente, sem nos cansarmos nem anestesiarmos.
249. Hoje é fácil cair na tentação de voltar página, dizendo que já
passou muito tempo e é preciso olhar para diante. Isso não, por amor de Deus!
Sem memória, nunca se avança; não se evolui sem uma memória íntegra e luminosa.
Precisamos de manter «viva a chama da consciência coletiva, testemunhando às
sucessivas gerações o horror daquilo que aconteceu», que assim «aviva e
preserva a memória das vítimas, para que a consciência humana se torne cada vez
mais forte contra toda a vontade de domínio e destruição».[234] Precisam
disso as próprias vítimas – indivíduos, grupos sociais ou nações – para não
cederem à lógica que leva a justificar a represália e qualquer violência em
nome do mal imenso que sofreram. Por isso, não me refiro só à memória dos
horrores, mas também à recordação daqueles que, no meio dum contexto envenenado
e corrupto, foram capazes de recuperar a dignidade e, com pequenos ou grandes
gestos, optaram pela solidariedade, o perdão, a fraternidade. É muito salutar
fazer memória do bem.
Perdão sem esquecimentos
250. O perdão não implica esquecimento. Antes, mesmo que haja algo
que de forma alguma pode ser negado, relativizado ou dissimulado, todavia
podemos perdoar. Mesmo que haja algo que jamais deve ser tolerado, justificado
ou desculpado, todavia podemos perdoar. Mesmo quando houver algo que por nenhum
motivo devemos permitir-nos esquecer, todavia podemos perdoar. O perdão livre e
sincero é uma grandeza que reflete a imensidão do perdão divino. Se o perdão é
gratuito, então pode-se perdoar até a quem resiste ao arrependimento e é
incapaz de pedir perdão.
251. Aqueles que perdoam de verdade não esquecem, mas renunciam a
deixar-se dominar pela mesma força destruidora que os lesou. Quebram o círculo
vicioso, frenam o avanço das forças da destruição. Decidem não continuar a
injetar na sociedade a energia da vingança que, mais cedo ou mais tarde, acaba
por cair novamente sobre eles próprios. Com efeito, a vingança nunca sacia
verdadeiramente a insatisfação das vítimas. Há crimes tão horrendos e cruéis
que, fazer sofrer quem os cometeu, não serve para sentir que se reparou o dano;
não bastaria sequer matar o criminoso, nem se poderiam encontrar torturas
comparáveis àquilo que pode ter sofrido a vítima. A vingança não resolve nada.
252. Também não estamos a falar de impunidade. Mas a justiça
procura-se de modo adequado só por amor à própria justiça, por respeito das
vítimas, para evitar novos crimes e visando preservar o bem comum, não como a
suposta descarga do próprio rancor. O perdão é precisamente o que permite
buscar a justiça sem cair no círculo vicioso da vingança nem na injustiça do
esquecimento.
253. Se houve injustiças de parte a parte, é preciso reconhecer
claramente a possibilidade de não terem tido a mesma gravidade ou de não serem
comparáveis. A violência exercida a partir das estruturas e do poder do Estado
não está ao mesmo nível que a violência de grupos particulares. Em todo o caso,
não se pode pretender que sejam recordados apenas os sofrimentos injustos duma
das partes. Como ensinaram os bispos da Croácia, «devemos o mesmo respeito a
toda a vítima inocente. Aqui não pode haver diferenças étnicas, confessionais,
nacionais ou políticas».[235]
254. Peço a Deus que «prepare os nossos corações para o encontro com
os irmãos independentemente das diferenças de ideias, língua, cultura, religião;
que unja todo o nosso ser com o óleo da sua misericórdia que cura as feridas
dos erros, das incompreensões, das controvérsias; [peço] a graça que nos envie,
com humildade e mansidão, pelas sendas desafiadoras mas fecundas da busca da
paz».[236]
A guerra e a pena de
morte
255. Há duas situações extremas que podem chegar a apresentar-se como
soluções em circunstâncias particularmente dramáticas, sem se dar conta que são
respostas falsas, não resolvem os problemas que pretendem superar e, em última
análise, nada mais fazem que acrescentar novos fatores de destruição no tecido
da sociedade nacional e mundial. Trata-se da guerra e da pena de morte.
A injustiça da guerra
256. «No coração dos que maquinam o mal, há falsidade, mas aqueles
que têm conselhos de paz, viverão na alegria» (Prov 12, 20). No
entanto, há quem busque soluções na guerra, que frequentemente «se nutre com a
perversão das relações, com as ambições hegemónicas, os abusos de poder, com o
medo do outro e a diferença vista como obstáculo».[237] A
guerra não é um fantasma do passado, mas tornou-se uma ameaça constante. O
mundo está a encontrar cada vez mais dificuldade no lento caminho da paz que
empreendera e começava a dar alguns frutos.
257. Dado que se estão a criar novamente as condições para a
proliferação de guerras, lembro que «a guerra é a negação de todos os direitos
e uma agressão dramática ao meio ambiente. Se se quiser um desenvolvimento
humano integral autêntico para todos, é preciso continuar incansavelmente no
esforço de evitar a guerra entre as nações e os povos. Para isso, é preciso
garantir o domínio incontrastado do direito e o recurso incansável às
negociações, aos mediadores e à arbitragem, como é proposto pela Carta
das Nações Unidas, verdadeira norma jurídica fundamental».[238] Quero
destacar que os 75 anos de existência das Nações Unidas e a experiência dos
primeiros 20 anos deste milénio mostram que a plena aplicação das normas
internacionais é realmente eficaz e que a sua inobservância é nociva. A Carta
das Nações Unidas, respeitada e aplicada com transparência e sinceridade, é
um ponto de referência obrigatório de justiça e um veículo de paz. Mas isto
pressupõe não disfarçar intenções ilícitas nem colocar os interesses
particulares de um país ou grupo acima do bem comum mundial. Se a norma é
considerada um instrumento que se usa quando resulta favorável e se contorna
quando não o é, desencadeiam-se forças incontroláveis que causam grande dano às
sociedades, aos mais frágeis, à fraternidade, ao meio ambiente e aos bens
culturais, com perdas irrecuperáveis para a comunidade global.
258. Deste modo facilmente se opta pela guerra valendo-se de todo o
tipo de desculpas aparentemente humanitárias, defensivas ou preventivas,
recorrendo-se mesmo à manipulação da informação. De facto, nas últimas décadas,
todas as guerras pretenderam ter uma «justificação». O Catecismo da
Igreja Católica fala da possibilidade duma legítima defesa por
meio da força militar, o que supõe demonstrar a existência de algumas
«condições rigorosas de legitimidade moral».[239] Mas
cai-se facilmente numa interpretação demasiado larga deste possível direito.
Assim, pretende-se indevidamente justificar inclusive ataques «preventivos» ou
ações bélicas que dificilmente não acarretem «males e desordens mais graves do
que o mal a eliminar».[240] A
questão é que, a partir do desenvolvimento das armas nucleares, químicas e
biológicas e das enormes e crescentes possibilidades que oferecem as novas
tecnologias, conferiu-se à guerra um poder destrutivo incontrolável, que atinge
muitos civis inocentes. É verdade que «nunca a humanidade teve tanto poder
sobre si mesma, e nada garante que o utilizará bem».[241] Assim,
já não podemos pensar na guerra como solução, porque provavelmente os riscos
sempre serão superiores à hipotética utilidade que se lhe atribua. Perante esta
realidade, hoje é muito difícil sustentar os critérios racionais amadurecidos
noutros séculos para falar duma possível «guerra justa». Nunca mais a guerra![242]
259. É importante acrescentar que, com o desenvolvimento da
globalização, aquilo que pode aparecer como uma solução imediata ou prática
para uma região da terra, desencadeia uma corrente de fatores violentos, muitas
vezes subterrâneos, que acabam por atingir todo o planeta e abrir caminho para
novas e piores guerras futuras. No nosso mundo, já não existem só «pedaços» de
guerra num país ou noutro, mas vive-se uma «guerra mundial aos pedaços», porque
os destinos dos países estão intensamente ligados entre si no cenário mundial.
260. Como dizia São João XXIII, «não é mais possível pensar que nesta
nossa era atómica a guerra seja um meio apto para ressarcir direitos violados».[243] Afirmava-o
num período de forte tensão internacional, manifestando assim o grande anseio
de paz que se difundia nos tempos da guerra fria. Reforçou a convicção de que
as razões da paz são mais fortes do que todo o cálculo de interesses
particulares e toda a confiança posta no uso das armas. Mas, por falta duma
visão de futuro e duma consciência compartilhada sobre o nosso destino comum,
não se exploraram adequadamente as oportunidades que oferecia o fim da guerra
fria. Em vez disso, cedeu-se à busca de interesses particulares, sem se
preocupar com o bem comum universal. Assim irrompeu novamente o fantasma
enganador da guerra.
261. Toda a guerra deixa o mundo pior do que o encontrou. A guerra é
um fracasso da política e da humanidade, uma rendição vergonhosa, uma derrota
perante as forças do mal. Não fiquemos em discussões teóricas, tomemos contacto
com as feridas, toquemos a carne de quem paga os danos. Voltemos o olhar para
tantos civis massacrados como «danos colaterais». Interroguemos as vítimas.
Prestemos atenção aos prófugos, àqueles que sofreram as radiações atómicas ou
os ataques químicos, às mulheres que perderam os filhos, às crianças mutiladas
ou privadas da sua infância. Consideremos a verdade destas vítimas da
violência, olhemos a realidade com os seus olhos e escutemos as suas histórias
com o coração aberto. Assim poderemos reconhecer o abismo do mal no coração da
guerra, e não nos turvará o facto de nos tratarem como ingénuos porque
escolhemos a paz.
262. Tampouco serão suficientes as normas, se se pensa que a solução
para os problemas atuais consiste em dissuadir os outros através do medo,
ameaçando-os com o uso de armas nucleares, químicas ou biológicas. Com efeito,
«se tomarmos em consideração as principais ameaças contra a paz e a segurança
com as suas múltiplas dimensões neste mundo multipolar do século XXI, como, por
exemplo, o terrorismo, os conflitos assimétricos, a segurança informática, os
problemas ambientais, a pobreza, muitas dúvidas emergem acerca da insuficiência
da dissuasão nuclear para responder de modo eficaz a tais desafios. Estas
preocupações assumem ainda mais consistência quando consideramos as
catastróficas consequências humanitárias e ambientais que derivam de qualquer
utilização das armas nucleares com efeitos devastadores indiscriminados e
incontroláveis no tempo e no espaço. (…) Devemos perguntar-nos também quanto
seja sustentável um equilíbrio baseado no medo, quando de facto ele tende a
aumentar o temor e a ameaçar as relações de confiança entre os povos. A paz e a
estabilidade internacionais não podem ser fundadas num falso sentido de
segurança, na ameaça de uma destruição recíproca ou de um aniquilamento total,
na manutenção de um equilíbrio de poder. (…) Em tal contexto, o objetivo final
da eliminação total das armas nucleares torna-se um desafio mas também um
imperativo moral e humanitário. (...) A crescente interdependência e a
globalização significam que a resposta que se der à ameaça de armas nucleares
deve ser coletiva e planeada, baseada na confiança recíproca, que só pode ser
construída através do diálogo sinceramente dirigido para o bem comum e não para
a tutela de interesses velados ou particulares».[244] E,
com o dinheiro usado em armas e noutras despesas militares, constituamos um
Fundo mundial,[245] para
acabar de vez com a fome e para o desenvolvimento dos países mais pobres, a fim
de que os seus habitantes não recorram a soluções violentas ou enganadoras, nem
precisem de abandonar os seus países à procura duma vida mais digna.
A pena de morte
263. Há outra maneira de eliminar o outro, não destinada aos países,
mas às pessoas: é a pena de morte. São João Paulo II declarou, de forma clara e
firme, que a mesma é inadequada no plano moral e já não é necessária no plano
penal.[246] Não
é possível pensar num recuo relativamente a esta posição. Hoje, afirmamos com
clareza que «a pena de morte é inadmissível»[247] e
a Igreja compromete-se decididamente a propor que seja abolida em todo o mundo.[248]
264. No Novo Testamento, ao mesmo tempo que se pede aos indivíduos
para não fazerem justiça por si próprios (cf. Rm 12, 19),
reconhece-se a necessidade de as autoridades imporem penas àqueles que praticam
o mal (cf. Rm 13, 4; 1 Ped 2, 14). Com efeito,
«a vida em comum, estruturada em volta de comunidades organizadas, precisa de
regras de convivência cuja livre violação exige uma resposta adequada».[249] Isto
implica que a autoridade pública legítima possa e deva «infligir penas
proporcionadas à gravidade dos delitos»[250] e
que se garanta ao poder judiciário «a necessária independência no âmbito da
lei».[251]
265. Desde os primeiros séculos da Igreja, alguns manifestaram-se
claramente contrários à pena de morte. Por exemplo, Lactâncio defendia que «não
há qualquer distinção que se possa fazer: sempre será crime matar um homem».[252] O
Papa Nicolau I exortava: «Esforçai-vos por livrar da pena de morte não só cada
um dos inocentes, mas também todos os culpados».[253] E,
por ocasião do julgamento de alguns homicidas que assassinaram dois sacerdotes,
Santo Agostinho pediu ao juiz para não tirar a vida aos assassinos, e
justificava-o da seguinte maneira: «Não que pretendamos com isto impedir que se
tire a indivíduos celerados a liberdade de cometer delitos, mas queremos que,
para esse fim, seja suficiente que, deixando-os vivos e sem mutilá-los em parte
alguma do corpo, aplicando as leis repressivas, eles sejam afastados da sua
agitação insana para serem reconduzidos a uma vida salutar e pacífica, ou que,
retirados das suas ações perversas, sejam ocupados nalgum trabalho útil. Também
isto é uma condenação, mas quem não entenderia que se trata mais dum benefício
que dum suplício, uma vez que não se deixa campo livre à audácia da ferocidade,
nem se retira o remédio do arrependimento? (...) Indigna-te contra a
iniquidade, mas sem esqueceres a humanidade; não dês livre curso à volúpia da
vingança contra as atrocidades dos pecadores, mas pretende antes curar as suas
feridas».[254]
266. Os medos e os rancores levam facilmente a entender as penas de
maneira vingativa, se não cruel, em vez de as considerar como parte dum
processo de cura e reinserção na sociedade. Hoje, «tanto por parte de alguns
setores da política como de certos meios de comunicação, por vezes incita-se à
violência e à vingança, pública e privada, não só contra quantos são
responsáveis por ter cometido delitos, mas também contra aqueles sobre os quais
recai a suspeita, fundada ou não, de ter infringido a lei. (...) Há por vezes a
tendência a construir deliberadamente inimigos: figuras estereotipadas, que
concentram em si todas as caraterísticas que a sociedade sente ou interpreta
como ameaçadoras. Os mecanismos de formação destas imagens são os mesmos que,
outrora, permitiram a expansão das ideias racistas».[255] Isso
tornou particularmente perigoso o costume crescente que há, nalguns países, de
recorrer a prisões preventivas, a reclusões sem julgamento e especialmente à
pena de morte.
267. Quero assinalar que «é impossível imaginar que hoje os Estados
não possam dispor de outro meio, que não seja a pena capital, para defender a
vida de outras pessoas do agressor injusto». De particular gravidade se
revestem as chamadas execuções extrajudiciais ou extralegais, que «são
homicídios deliberados cometidos por alguns Estados e pelos seus agentes, com
frequência feitos passar como confrontos com delinquentes, ou apresentados como
consequências indesejadas do uso razoável, necessário e proporcional da força para
manter e aplicar a lei».[256]
268. «Os argumentos contrários à pena de morte são muitos e bem conhecidos.
A Igreja frisou oportunamente alguns deles, como a possibilidade da existência
de erro judicial e o uso que dela fazem os regimes totalitários e ditatoriais,
que a utilizam como instrumento de supressão da dissidência política ou
perseguição das minorias religiosas e culturais, todas vítimas que, para as
suas respetivas legislações, são “delinquentes”. Por conseguinte, todos os
cristãos e homens de boa vontade estão chamados hoje a lutar não só pela
abolição da pena de morte, legal ou ilegal, em todas as suas formas, mas também
para melhorar as condições carcerárias, no respeito pela dignidade humana das
pessoas privadas da liberdade. E relaciono isto com a prisão perpétua. (...) A
prisão perpétua é uma pena de morte escondida».[257]
269. Lembremos que «nem sequer o homicida perde a sua dignidade
pessoal e o próprio Deus Se constitui seu garante».[258] A
rejeição firme da pena de morte mostra até que ponto é possível reconhecer a
dignidade inalienável de todo o ser humano e aceitar que tenha um lugar neste
universo. Visto que não o nego ao pior dos criminosos, não o negarei a ninguém,
darei a todos a possibilidade de compartilhar comigo este planeta, apesar do
que nos possa separar.
270. Aos cristãos que hesitam e se sentem tentados a ceder a qualquer
forma de violência, convido-os a lembrar este anúncio do livro de Isaías:
«transformarão as suas espadas em relhas de arado» (2, 4). Para nós, esta
profecia encarna em Jesus Cristo, que, ao ver um discípulo excitado pela
violência, lhe disse com firmeza: «Mete a tua espada na bainha, pois todos
quantos se servirem da espada, morrerão à espada» (Mt 26, 52). Era
um eco daquela antiga admoestação: «Ao homem, pedirei contas da vida do homem,
seu irmão. A quem derramar o sangue do homem, pela mão do homem será derramado
o seu» (Gn 9, 5-6). Esta reação de Jesus, que brotou
espontaneamente do seu coração, supera a distância dos séculos e chega até hoje
como um apelo incessante.
Capítulo VIII
AS RELIGIÕES AO SERVIÇO DA FRATERNIDADE NO MUNDO
271. As várias religiões, ao partir do reconhecimento do valor de
cada pessoa humana como criatura chamada a ser filho ou filha de Deus, oferecem
uma preciosa contribuição para a construção da fraternidade e a defesa da
justiça na sociedade. O diálogo entre pessoas de diferentes religiões não se
faz apenas por diplomacia, amabilidade ou tolerância. Como ensinaram os bispos
da Índia, «o objetivo do diálogo é estabelecer amizade, paz, harmonia e
partilhar valores e experiências morais e espirituais num espírito de verdade e
amor».[259]
O fundamento último
272. Como crentes, pensamos que, sem uma abertura ao Pai de todos,
não podem haver razões sólidas e estáveis para o apelo à fraternidade. Estamos
convencidos de que «só com esta consciência de filhos que não são órfãos,
podemos viver em paz entre nós».[260] Com
efeito, «a razão, por si só, é capaz de ver a igualdade entre os homens e
estabelecer uma convivência cívica entre eles, mas não consegue fundar a
fraternidade».[261]
273. Nesta linha, quero lembrar um texto memorável: «Se não existe
uma verdade transcendente, na obediência à qual o homem adquire a sua plena
identidade, então não há qualquer princípio seguro que garanta relações justas
entre os homens. Com efeito, o seu interesse de classe, de grupo, de nação
contrapõe-nos inevitavelmente uns aos outros. Se não se reconhece a verdade
transcendente, triunfa a força do poder, e cada um tende a aproveitar-se ao
máximo dos meios à sua disposição para impor o próprio interesse ou opinião,
sem atender aos direitos do outro. (...) A raiz do totalitarismo moderno,
portanto, deve ser individuada na negação da transcendente dignidade da pessoa
humana, imagem visível de Deus invisível, e precisamente por isso, pela sua
própria natureza, sujeito de direitos que ninguém pode violar: seja indivíduo,
grupo, classe, nação ou Estado. Nem tampouco o pode fazer a maioria de um corpo
social, lançando-se contra a minoria».[262]
274. A partir da nossa experiência de fé e da sabedoria que se vem
acumulando ao longo dos séculos e aprendendo também das nossas inúmeras
fraquezas e quedas, como crentes das diversas religiões sabemos que tornar Deus
presente é um bem para as nossas sociedades. Buscar a Deus com coração sincero,
desde que não o ofusquemos com os nossos interesses ideológicos ou
instrumentais, ajuda a reconhecer-nos como companheiros de estrada,
verdadeiramente irmãos. Julgamos que, «quando se pretende, em nome duma
ideologia, expulsar Deus da sociedade, acaba-se adorando ídolos, e bem depressa
o próprio homem se sente perdido, a sua dignidade é espezinhada, os seus
direitos violados. Conheceis bem a brutalidade a que pode conduzir a privação da
liberdade de consciência e da liberdade religiosa, e como desta ferida se gera
uma humanidade radicalmente empobrecida, porque fica privada de esperança e de
ideais».[263]
275. Temos de reconhecer que, «entre as causas mais importantes da
crise do mundo moderno, se contam uma consciência humana anestesiada e o
afastamento dos valores religiosos, bem como o predomínio do individualismo e
das filosofias materialistas que divinizam o homem e colocam os valores
mundanos e materiais no lugar dos princípios supremos e transcendentes».[264] Não
se pode admitir que, no debate público, só tenham voz os poderosos e os
cientistas. Deve haver um lugar para a reflexão que provém de um fundo
religioso que recolhe séculos de experiência e sabedoria. «Os textos religiosos
clássicos podem oferecer um significado para todas as épocas, possuem uma força
motivadora», mas de facto «são desprezados pela miopia dos racionalismos».[265]
276. Por estas razões, embora a Igreja respeite a autonomia da
política, não relega a sua própria missão para a esfera do privado. Pelo
contrário, não pode nem deve ficar à margem na construção de um mundo melhor
nem deixar de «despertar as forças espirituais»[266] que
possam fecundar toda a vida social. É verdade que os ministros da religião não
devem fazer política partidária, própria dos leigos, mas mesmo eles não podem
renunciar à dimensão política da existência[267] que
implica uma atenção constante ao bem comum e a preocupação pelo desenvolvimento
humano integral. A Igreja «tem um papel público que não se esgota nas suas
atividades de assistência ou de educação», mas busca a «promoção do homem e da
fraternidade universal».[268] Não
pretende disputar poderes terrenos, mas oferecer-se como «uma família entre as
famílias – a Igreja é isto –, disponível (…) para testemunhar ao mundo de hoje
a fé, a esperança e o amor ao Senhor mas também àqueles que Ele ama com
predileção. Uma casa com as portas abertas... A Igreja é uma casa com as portas
abertas, porque é mãe».[269] E
como Maria, a Mãe de Jesus, «queremos ser uma Igreja que serve, que sai de
casa, que sai dos seus templos, que sai das suas sacristias, para acompanhar a
vida, sustentar a esperança, ser sinal de unidade (…) para lançar pontes, abater
muros, semear reconciliação».[270]
A identidade cristã
277. A Igreja valoriza a ação de Deus nas outras religiões e «nada
rejeita do que, nessas religiões, existe de verdadeiro e santo. Olha com
sincero respeito esses modos de agir e viver, esses preceitos e doutrinas que
(…) refletem não raramente um raio da verdade que ilumina todos os homens».[271] Todavia,
como cristãos, não podemos esconder que, «se a música do Evangelho parar de
vibrar nas nossas entranhas, perderemos a alegria que brota da compaixão, a
ternura que nasce da confiança, a capacidade da reconciliação que encontra a
sua fonte no facto de nos sabermos sempre perdoados-enviados. Se a música do
Evangelho cessar de repercutir nas nossas casas, nas nossas praças, nos postos
de trabalho, na política e na economia, teremos extinguido a melodia que nos
desafiava a lutar pela dignidade de todo o homem e mulher».[272] Outros
bebem doutras fontes. Para nós, este manancial de dignidade humana e
fraternidade está no Evangelho de Jesus Cristo. Dele brota, «para o pensamento
cristão e para a ação da Igreja, o primado reservado à relação, ao encontro com
o mistério sagrado do outro, à comunhão universal com a humanidade inteira,
como vocação de todos».[273]
278. Chamada a encarnar-se em todas as situações e presente através
dos séculos em todo o lugar da terra – isto mesmo significa «católica» –, a
Igreja pode, a partir da sua experiência de graça e pecado, compreender a
beleza do convite ao amor universal. Com efeito, «tudo o que é humano nos diz
respeito (...); onde quer que as assembleias dos povos se reúnam para
determinar os direitos e os deveres do homem, sentimo-nos honrados, quando
no-lo permitem, tomando lugar nelas».[274] Para
muitos cristãos, este caminho de fraternidade tem também uma Mãe, chamada
Maria. Ela recebeu junto da Cruz esta maternidade universal (cf. Jo 19,
26) e cuida não só de Jesus, mas também do «resto da sua descendência» (Ap 12,
17). Com o poder do Ressuscitado, Ela quer dar à luz um mundo novo, onde todos
sejamos irmãos, onde haja lugar para cada descartado das nossas sociedades,
onde resplandeçam a justiça e a paz.
279. Como cristãos, pedimos que, nos países onde somos minoria, nos
seja garantida a liberdade, tal como nós a favorecemos para aqueles que não são
cristãos onde eles são minoria. Existe um direito humano fundamental que não
deve ser esquecido no caminho da fraternidade e da paz: é a liberdade religiosa
para os crentes de todas as religiões. Esta liberdade manifesta que podemos
«encontrar um bom acordo entre culturas e religiões diferentes; testemunha que
as coisas que temos em comum são tantas e tão importantes que é possível
individuar uma estrada de convivência serena, ordenada e pacífica, na aceitação
das diferenças e na alegria de sermos irmãos porque filhos de um único Deus».[275]
280. Ao mesmo tempo, pedimos a Deus que fortaleça a unidade dentro da
Igreja, unidade que se enriquece com diferenças que se reconciliam pela ação do
Espírito Santo. Com efeito, «num só Espírito, fomos todos batizados para formar
um só corpo» (1 Cor 12, 13), onde cada um presta a sua contribuição
peculiar. Como dizia Santo Agostinho, «o ouvido vê através do olho, e o olho
escuta através do ouvido».[276] Também
é urgente continuar a dar testemunho dum caminho de encontro entre as várias
confissões cristãs. Não podemos esquecer o desejo expresso por Jesus: «Que
todos sejam um só» (Jo 17, 21). Ao escutar o seu convite,
reconhecemos com tristeza que, no processo de globalização, falta ainda a
contribuição profética e espiritual da unidade entre todos os cristãos.
Todavia, «apesar de estarmos ainda a caminho para a plena comunhão, já temos o
dever de oferecer um testemunho comum do amor de Deus por todas as pessoas,
trabalhando em conjunto ao serviço da humanidade».[277]
Religião e violência
281. Entre as religiões, é possível um caminho de paz. O ponto de
partida deve ser o olhar de Deus. Porque, «Deus não olha com os olhos, Deus
olha com o coração. E o amor de Deus é o mesmo para cada pessoa, seja qual for
a religião. E se é um ateu, é o mesmo amor. Quando chegar o último dia e houver
a luz suficiente na terra para poder ver as coisas como são, não faltarão
surpresas!»[278]
282. Também «os crentes precisam de encontrar espaços para dialogar e
atuar juntos pelo bem comum e a promoção dos mais pobres. Não se trata de nos
tornarmos todos mais volúveis nem de escondermos as convicções próprias que nos
apaixonam, para podermos encontrar-nos com outros que pensam de maneira
diferente. (…) Com efeito, quanto mais profunda, sólida e rica for uma
identidade, mais enriquecerá os outros com a sua contribuição específica».[279] Como
crentes, somos desafiados a retornar às nossas fontes para nos concentrarmos no
essencial: a adoração de Deus e o amor ao próximo, para que alguns aspetos da
nossa doutrina, fora do seu contexto, não acabem por alimentar formas de
desprezo, ódio, xenofobia, negação do outro. A verdade é que a violência não
encontra fundamento algum nas convicções religiosas fundamentais, mas nas suas
deformações.
283. O culto sincero e humilde a Deus «leva, não à discriminação, ao
ódio e à violência, mas ao respeito pela sacralidade da vida, ao respeito pela
dignidade e a liberdade dos outros e a um solícito compromisso em prol do
bem-estar de todos».[280] Na
realidade, «aquele que não ama não chegou a conhecer a Deus, pois Deus é amor»
(1 Jo 4, 8). Por isso, «o terrorismo execrável que ameaça a
segurança das pessoas, tanto no Oriente como no Ocidente, tanto no Norte como
no Sul, espalhando pânico, terror e pessimismo não se deve à religião – embora
os terroristas a instrumentalizem – mas tem origem no cúmulo de interpretações
erradas dos textos religiosos, nas políticas de fome, de pobreza, de injustiça,
de opressão, de arrogância; por isso, é necessário interromper o apoio aos
movimentos terroristas através do fornecimento de dinheiro, de armas, de planos
ou justificações e também a cobertura mediática, e considerar tudo isto como
crimes internacionais que ameaçam a segurança e a paz mundial. É preciso
condenar tal terrorismo em todas as suas formas e manifestações».[281] As
convicções religiosas sobre o sentido sagrado da vida humana consentem-nos
«reconhecer os valores fundamentais da nossa humanidade comum, valores em nome
dos quais se pode e deve colaborar, construir e dialogar, perdoar e crescer,
permitindo que o conjunto das diferentes vozes forme um canto nobre e
harmonioso, e não gritos fanáticos de ódio».[282]
284. Às vezes, a violência fundamentalista desencadeia-se em alguns
grupos de qualquer religião pela imprudência dos seus líderes. Mas «o
mandamento da paz está inscrito nas profundezas das tradições religiosas que
nós representamos. (...) Nós, líderes religiosos, somos chamados a ser
verdadeiros “dialogantes”, a agir na construção da paz, e não como
intermediários, mas como mediadores autênticos. Os intermediários procuram
contentar todas as partes, com a finalidade de obter um lucro para si mesmos. O
mediador, ao contrário, é aquele que nada reserva para si próprio, mas que se
dedica generosamente, até se consumir, consciente de que o único lucro é a paz.
Cada um de nós é chamado a ser um artífice da paz, unindo e não dividindo,
extinguindo o ódio em vez de o conservar, abrindo caminhos de diálogo em vez de
erguer novos muros».[283]
Apelo
285. Naquele encontro fraterno, que recordo jubilosamente, com o
Grande Imã Ahmad Al-Tayyeb «declaramos – firmemente – que as religiões nunca
incitam à guerra e não solicitam sentimentos de ódio, hostilidade, extremismo
nem convidam à violência ou ao derramamento de sangue. Estas calamidades são
fruto de desvio dos ensinamentos religiosos, do uso político das religiões e
também das interpretações de grupos de homens de religião que abusaram – nalgumas
fases da história – da influência do sentimento religioso sobre os corações dos
homens (…). Com efeito Deus, o Todo-Poderoso, não precisa de ser defendido por
ninguém e não quer que o Seu nome seja usado para aterrorizar as pessoas».[284] Por
isso, quero retomar aqui o apelo à paz, justiça e fraternidade que fizemos
juntos:
«Em nome de Deus, que
criou todos os seres humanos iguais nos direitos, nos deveres e na dignidade e
os chamou a conviver entre si como irmãos, a povoar a terra e espalhar sobre
ela os valores do bem, da caridade e da paz.
Em nome da alma humana
inocente que Deus proibiu de matar, afirmando que qualquer um que mate uma
pessoa é como se tivesse morto toda a humanidade e quem quer que salve uma
pessoa é como se tivesse salvo toda a humanidade.
Em nome dos pobres, dos
miseráveis, dos necessitados e dos marginalizados, a quem Deus ordenou socorrer
como um dever exigido a todos os homens e de modo particular às pessoas
facultosas e abastadas.
Em nome dos órfãos, das
viúvas, dos refugiados e dos exilados das suas casas e dos seus países; de
todas as vítimas das guerras, das perseguições e das injustiças; dos fracos, de
quantos vivem no medo, dos prisioneiros de guerra e dos torturados em qualquer
parte do mundo, sem distinção alguma.
Em nome dos povos que
perderam a segurança, a paz e a convivência comum, tornando-se vítimas das
destruições, das ruínas e das guerras.
Em nome da “fraternidade
humana”, que abraça todos os homens, une-os e torna-os iguais.
Em nome desta fraternidade,
dilacerada pelas políticas de integralismo e divisão e pelos sistemas de lucro
desmesurado e pelas tendências ideológicas odiosas, que manipulam as ações e os
destinos dos homens.
Em nome da liberdade,
que Deus deu a todos os seres humanos, criando-os livres e enobrecendo-os com
ela.
Em nome da justiça e
misericórdia, fundamentos da prosperidade e pilares da fé.
Em nome de todas as
pessoas de boa vontade, presentes em todos os cantos da terra.
Em nome de Deus e de
tudo isto, (…) declaramos adotar a cultura do diálogo como caminho; a
colaboração comum como conduta; o conhecimento mútuo como método e critério».[285]
***
286. Neste espaço de reflexão sobre a fraternidade universal,
senti-me motivado especialmente por São Francisco de Assis e também por outros
irmãos que não são católicos: Martin Luther King, Desmond Tutu, Mahatma
Mohandas Gandhi e muitos outros. Mas quero terminar lembrando uma outra pessoa
de profunda fé, que, a partir da sua intensa experiência de Deus, realizou um
caminho de transformação até se sentir irmão de todos. Refiro-me ao Beato
Carlos de Foucauld.
287. O seu ideal duma entrega total a Deus encaminhou-o para uma
identificação com os últimos, os mais abandonados no interior do deserto
africano. Naquele contexto, afloravam os seus desejos de sentir todo o ser
humano como um irmão,[286] e
pedia a um amigo: «Peça a Deus que eu seja realmente o irmão de todos».[287] Enfim
queria ser «o irmão universal».[288] Mas
somente identificando-se com os últimos é que chegou a ser irmão de todos. Que
Deus inspire este ideal a cada um de nós. Amen.
Oração ao Criador
Senhor e Pai da
humanidade,
que criastes todos os seres humanos com a mesma dignidade,
infundi nos nossos corações um espírito fraterno.
Inspirai-nos o sonho de um novo encontro, de diálogo, de justiça e de paz.
Estimulai-nos a criar sociedades mais sadias e um mundo mais digno,
sem fome, sem pobreza, sem violência, sem guerras.
Que o nosso coração se
abra
a todos os povos e nações da terra,
para reconhecer o bem e a beleza
que semeastes em cada um deles,
para estabelecer laços de unidade, de projetos comuns,
de esperanças compartilhadas. Amen.
Oração cristã ecuménica
Deus nosso, Trindade de
amor,
a partir da poderosa comunhão da vossa intimidade divina
infundi no meio de nós o rio do amor fraterno.
Dai-nos o amor que transparecia nos gestos de Jesus,
na sua família de Nazaré e na primeira comunidade cristã.
Concedei-nos, a nós
cristãos, que vivamos o Evangelho
e reconheçamos Cristo em cada ser humano,
para O vermos crucificado nas angústias dos abandonados
e dos esquecidos deste mundo
e ressuscitado em cada irmão que se levanta.
Vinde, Espírito Santo!
Mostrai-nos a vossa beleza
refletida em todos os povos da terra,
para descobrirmos que todos são importantes,
que todos são necessários, que são rostos diferentes
da mesma humanidade amada por Deus. Amen.
Dado em Assis, junto do
túmulo de São Francisco, na véspera da Memória litúrgica do referido Santo, 3
de outubro do ano 2020, oitavo do meu pontificado.
Franciscus
[1] Admoestações, 6, 1: Fonti francescane,
155. Tradução da expressão italiana: «Todos irmãos».
[2] Ibid., 25: o. c., 175.
[3] São Francisco de Assis, Regra não bulada dos Frades
Menores, 16, 3.6: Fonti francescane, 42-43.
[4] Eloi Leclerc ofm, Exilio y ternura (Madrid
1987), 205.
[5] Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 21.
[6] Francisco, Discurso no encontro ecuménico e inter-religioso com os
jovens (Skopje – Macedónia do Norte 7 de maio de
2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
14/V/2019), 13.
[7] Francisco, Discurso no Parlamento Europeu (Estrasburgo
25 de novembro de 2014): AAS 106 (2014), 996.
[8] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades, a sociedade civil
e o corpo diplomático, (Santiago – Chile 16 de janeiro de
2018): AAS 110 (2018), 256.
[9] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 19: AAS 101 (2009), 655.
[10] Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019),
181.
[11] Card. Raúl Silva Henríquez sdb, Homilia
no Te Deum em Santiago do Chile (18 de setembro de
1974).
[12] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
57: AAS 107 (2015), 869.
[13] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11
de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 120.
[14] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (13
de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 83 84.
[15] Cf. Idem, Discurso à Fundação «Centesimus annus pro Pontifice» (25
de maio de 2013): Insegnamenti I,1 (2013), 238.
[16] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de
1967), 14: AAS 59 (1967), 264.
[17] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 22: AAS 101 (2009), 657.
[18] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo
diplomático (Tirana – Albânia 21 de setembro de
2014): AAS 106 (2014), 773.
[19] Idem, Mensagem aos participantes na Conferência internacional
sobre «Os direitos humanos no mundo contemporâneo: conquistas, omissões,
negações» (10 de dezembro de 2018): L´Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 11/XII/2018), 16.
[20] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 212: AAS 105 (2013), 1108.
[21] Idem, Mensagem para o 48º Dia Mundial da Paz de
2015 (8 de dezembro de 2014), 3-4: AAS 107 (2015), 69-71.
[23] Idem, Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz de
2016 (8 de dezembro de 2015), 2: AAS 108 (2016), 49.
[24] Idem, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de
2020 (8 de dezembro de 2019), 1: L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8.
[25] Francisco, Discurso sobre as armas nucleares (Nagasáqui
– Japão 24 de novembro de 2019): L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 03/XII/2019), 9.
[26] Idem, Discurso aos professores e estudantes do
Colégio São Carlos de Milão (6 de abril de 2019): L´Osservatore
Romano (08-09/IV/2019), 6.
[27] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 21.
[28] Francisco, Discurso ao mundo académico e cultural (Cagliari
– Itália 22 de setembro de 2013): L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 29/IX/2013), 8.
[29] Idem, Carta «Humana communitas» ao Presidente da
Academia Pontifícia para a Vida por ocasião do XXV aniversário da sua
instituição (6 de janeiro de 2019), 2.6: L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 22/I/2019), 8-9.
[30] Idem, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de
abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 04/V/2017), 16.
[31] Homilia durante o Momento extraordinário de oração em
tempos de epidemia (27 de março de 2020): L´Osservatore
Romano (29/III/2020), 10.
[32] Francisco, Homilia durante a Santa Missa (Skopje –
Macedónia do Norte 7 de maio de 2019): L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 14/V/2019), 11.
[33] Cf. Eneida I, 462: «Sunt lacrimae rerum
et mentem mortalia tangunt – são lágrimas das coisas, as peripécias
dos mortais confrangem a alma».
[34] «Historia (…) magistra vitae»
(Cícero, De Oratore, 2, 36).
[35] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
204: AAS 107 (2015), 928.
[36] Idem, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019),
91.
[39] Bento XVI, Mensagem para o 99º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em
2013 (12 de outubro de 2012): AAS 104 (2012), 908.
[40] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019),
92.
[41] Idem, Mensagem para o 106º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em
2020 (13 de maio de 2020): L’Osservatore Romano (16/V/2020),
8.
[42] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11
de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 124.
[43] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (13
de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 84.
[44] Idem, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11
de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 123.
[45] Francisco, Mensagem para o 105º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado em
2019 (27 de maio de 2019): L´Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 04/VI/2019), 12.
[46] Idem, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019),
88.
[48] Francisco, Exort. ap. Gaudete et exsultate (19 de março de
2018), 115.
[49] Do filme de Wim Wenders O Papa Francisco
– Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018).
[50] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades, a sociedade civil
e o corpo diplomático, (Tallinn – Estónia 25 de setembro de
2018): L´Osservatore Romano (27/IX/2018), 9.
[51] Cf. Francisco, Homilia durante o Momento extraordinário de oração em
tempos de epidemia (27 de março de 2020): L´Osservatore
Romano (29/III/2020), 10; Idem, Mensagem para o 4º Dia Mundial dos Pobres (13
de junho de 2020), 6: L´Osservatore Romano (14/VI/2020), 8.
[52] Idem, Discurso no encontro com os jovens do Centro Cultural Padre
Félix Varela (Havana – Cuba 20 de setembro de 2015): L´Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 24/IX/2015), 9.
[53] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a
Igreja no mundo contemporâneo Gaudium et spes,
1.
[54] Adversus haereses 2, 25, 2: PG 7/1,
708-709.
[55] Talmud Bavli (Talmud de Babilónia), Shabbat, 31
a.
[56] Francisco, Discurso no encontro com os assistidos nas obras
sociocaritativas da Igreja (Tallinn - Estónia 25 de
setembro de 2018): L´Osservatore Romano (27/IX/2018), 8.
[57] Idem, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de
abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 04/V/2017), 16.
[58] Homiliae in Matthaeum, 50, 3-4: PG 58,
508.
[59] Francisco, Mensagem por ocasião do Encontro dos Movimentos Populares, em
Modesto, Estados Unidos d’América (10 de fevereiro de 2017): AAS 109
(2017), 291.
[60] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 235: AAS 105 (2013), 1115.
[61] São João Paulo II, Alocução do Angelus rezado
com os inválidos (Osnabrück – República Federal da Alemanha
16 de novembro de 1980): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 23/XI/1980), 20.
[62] Conc. Ecum. Vat. II, Const. past. sobre a Igreja no mundo
contemporâneo Gaudium et spes, 24.
[63] Gabriel Marcel, Du refus à l’invocation (Paris
1940), 50.
[64] Francisco, Alocução do Angelus (10
de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 12/XI/2019), 3.
[65] Cf. São Tomás de Aquino, Scriptum super Sententiis,
lib. III, dist. 27, q. 1, a. 1, ad 4: «Dicitur amor extasim facere, et fervere,
quia quod fervet extra se bullit et exhalat – diz-se que o amor produz
êxtase e efervescência, contanto que o efervescente ferva fora de si e expire»
[66] Karol Wojtila, Amore e responsabilità (Casale
Monferrato 1983), 90.
[67] Karl Rahner, Kleines Kirchenjahr. Ein Gang durch den
Festkreis (Friburgo 1981), 30.
[68] Regula, 53, 15: «Pauperum et peregrinorum maxime
susceptioni cura sollicite exhibeatur».
[69] Cf. Summa theologiae II-II, q. 23, art. 7;
Santo Agostinho, Contra Julianum, 4, 18: PL 44,
748: «De quantos prazeres se privam os avarentos, para aumentar os seus
tesouros ou com medo de os ver diminuir!»
[70] «Secundum acceptionem divinam»: São Boaventura, Scriptum
super Sententiis, lib. III, dist. 27, a. 1, q. 1, concl. 4.
[71] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de
2005), 15: AAS 98 (2006), 230.
[72] Summa theologiae II-II, q. 27, art. 2, resp.
[73] Cf. ibid. I-II, q. 26, art. 3, resp.
[74] Ibid., q. 110, art. 1, resp.
[75] Francisco, Mensagem para o 47º Dia Mundial da Paz de
2014 (8 de dezembro de 2013), 1: AAS 106 (2014), 22.
[76] Cf. Idem, Alocução do Angelus (29 de dezembro de 2013): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 02/I/2014), 12; Discurso ao corpo diplomático
acreditado junto da Santa Sé (12 de janeiro de 2015): AAS 107
(2015), 165.
[77] Francisco, Mensagem para o Dia Internacional das Pessoas com
Deficiência (3 de dezembro de 2019): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 10/XII/2019), 4.
[78] Idem, Discurso no Encontro em prol da liberdade religiosa (Filadélfia
– Estados Unidos d’América 26 de setembro de 2015): AAS 107
(2015), 1050-1051.
[79] Idem, Discurso no Encontro com os jovens (Tóquio
– Japão 25 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 03/XII/2019), 14.
[80] Nestas considerações, deixo-me inspirar pelo pensamento de
Paul Ricoeur, «Le socius et le prochain», in: Idem, Histoire
et vérité (Paris 1967), 113-127.
[81] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 190: AAS 105 (2013), 1100.
[83] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
129: AAS 107 (2015), 899.
[84] Idem, Mensagem para o evento «Economy of Francesco» (1
de maio de 2019): Insegnamenti II,2 (2014), 625-626; L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 21/V/2019), 7.
[85] Idem, Discurso no Parlamento Europeu (Estrasburgo
25 de novembro de 2014): AAS 106 (2014), 997.
[86] Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 229: AAS 107
(2015), 937.
[87] Francisco, Mensagem para o 49º Dia Mundial da Paz de
2016 (8 de dezembro de 2015), 6: AAS 108 (2016), 57-58.
[88] A solidez está na raiz etimológica da palavra solidariedade.
Esta, segundo o significado ético-político assumido nos últimos dois séculos,
gera uma construção social segura e firme.
[89] Francisco, Homilia na Santa Missa (Havana – Cuba
20 de setembro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 24/IX/2015), 6.8.
[90] Idem, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos
Movimentos populares (28 de outubro de 2014): AAS 106
(2014), 851-852.
[91] Cf. São Basílio, Homilia 21. Quod rebus mundanis
adhaerendum non sit, 3 e 5: PG 31, 545-549; Regulae
brevius tractatae, 92: PG 31, 1145-1148; São Pedro
Crisólogo, Sermo 123: PL 52, 536-540; Santo
Ambrósio, De Nabuthe 27.52: PL 14, 738-739;
Santo Agostinho, In Iohannis Evangelium 6, 25: PL 35,
1436-1437.
[92] De Lazarum Concio 2, 6: PG 48,
992D.
[93] Regula pastoralis 3, 21: PL 77,
87.
[94] Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991),
31: AAS 83 (1991), 831.
[95] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
93: AAS 107 (2015), 884.
[96] São João Paulo II, Carta enc. Laborem exercens (14 de setembro de
1981), 19: AAS 73 (1981), 626.
[97] Cf. Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 172.
[98] Carta enc. Populorum progressio (26 de março de
1967), 22: AAS 59 (1967), 268.
[99] São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de
dezembro de 1987), 33: AAS 80 (1988), 557.
[100] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
95: AAS 107 (2015), 885.
[102] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de
1967), 15: AAS 59 (1967), 265; Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 16: AAS 101 (2009), 652.
[103] Cf. Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
93: AAS 107 (2015), 884-885; Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 189-190: AAS 105 (2013), 1099-1100.
[104] Conferência dos Bispos católicos dos Estados Unidos, Open
wide our Hearts: The enduring Call to Love. A Pastoral Letter against Racism (novembro
de 2018).
[105] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
51: AAS 107 (2015), 867.
[106] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 6: AAS 101 (2009), 644.
[107] São João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991),
35: AAS 83 (1991), 838.
[108] Francisco, Discurso sobre as armas nucleares (Nagasáqui
- Japão 24 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 03/XII/2019), 9.
[109] Cf. Bispos Católicos do México e dos Estados Unidos, Carta
pastoral Strangers no longer: together on the journey of hope (janeiro
de 2003).
[110] Francisco, Catequese na Audiência Geral (3 de
abril de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 09/IV/2019), 3.
[111] Cf. Francisco, Mensagem para o 104º Dia Mundial do Migrante e do Refugiado (14
de janeiro de 2018): AAS 109 (2017), 918-923.
[112] Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 22.
[113] Francisco, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (11
de janeiro de 2016): AAS 108 (2016), 124.
[115] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Christus vivit (25 de março de 2019),
93.
[117] Idem, Discurso no Encontro com as autoridades e o corpo
diplomático (Sarajevo – Bósnia-Herzegovina 6 de junho de
2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
11/VI/2015), 3.
[118] Francisco em diálogo com Reyes Alcaide, Latinoamérica.
Conversaciones con Hernán Reyes Alcaide (Buenos Aires 2017), 105.
[119] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 22.
[120] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 67: AAS 101 (2009), 700.
[123] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 447.
[124] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 234: AAS 105 (2013), 1115.
[125] Ibid., 235: o. c., 1115.
[127] São João Paulo II, Discurso aos representantes do
mundo da cultura (Buenos Aires – Argentina 12 de abril de 1987),
4: L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de 10/V/1987),
8.
[128] Cf. Idem, Discurso aos Cardeais e à Cúria
(21 de dezembro de 1984), 4: AAS 76 (1984), 506.
[129] Exort. ap. pós-sinodal Querida Amazonia (2 de fevereiro de
2020), 37.
[130] Georg Simmel, Brücke und Tür. Essays des Philosophen
zur Geschichte, Religion, Kunst und Gesellschaft (Estugarda 1957), 6.
[131] Cf. Jaime Hoyos-Vásquez, «Lógica de las relaciones sociales.
Reflexión onto-lógica», in Revista Universitas Philosophica 15-16
(dezembro 1990 a junho 1991), Bogotá, 95-106.
[132] Antonio Spadaro sj, «Le orme di un pastore. Una
conversazione con Papa Francesco», in Jorge Mario Bergoglio – Papa Francisco, Nei
tuoi occhi è la mia parola. Omelie e discorsi di Buenos Aires 1999-2013 (Milão
2016), XVI; cf. Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 220-221: AAS 105 (2013), 1110-1111.
[133] Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 204: AAS 105 (2013), 1106.
[134] Cf. ibid., 204: o. c., 1105-1106.
[135] Ibid., 202: o. c., 1105.
[136] Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
128: AAS 107 (2015), 898.
[137] Francisco, Discurso ao corpo diplomático acreditado junto da Santa Sé (12
de janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 165; cf. Idem, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos
Movimentos Populares (28 de outubro de 2014): AAS 106
(2014), 851-859.
[138] Algo parecido podemos dizer da categoria bíblica «Reino de
Deus».
[139] Paul Ricoeur, «Le socius et le prochain»,
in: Idem, Histoire et vérité (Paris 1967), 122.
[140] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
129: AAS 107 (2015), 899.
[141] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 35: AAS 101 (2009), 670.
[142] Francisco, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos
Movimentos Populares (28 de outubro de 2014):AAS 106
(2014), 858.
[144] Idem, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos
Movimentos Populares (5 de novembro de 2016): L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 10/XI/2016), 10.
[147] Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015), 189: AAS 107
(2015), 922.
[148] Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova
Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107
(2015), 1037.
[149] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
175: AAS 107 (2015), 916-917.
[150] Cf. Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 67: AAS 101 (2009), 700-701.
[152] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 434.
[153] Francisco, Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova
Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107
(2015), 1037 e 1041.
[154] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 437.
[155] São João Paulo II, Mensagem para o 37º Dia Mundial da Paz de 2004 (8 de dezembro de 2003),
5: AAS 96 (2004), 117.
[156] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 439.
[157] Cf. Conferência dos Bispos de França (Comissão Social),
Declaração Réhabiliter la politique (17 de fevereiro de 1999).
[158] Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
189: AAS 107 (2015), 922.
[163] Conferência Episcopal Portuguesa, Carta pastoral Responsabilidade
solidária pelo bem comum (15 de setembro de 2003), 20; cf. Francisco,
Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
159: AAS 107 (2015), 914.
[164] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
191: AAS 107 (2015), 923.
[165] Pio XI, Discurso à Federação Universitária Católica
Italiana (18 de dezembro de 1927): L’Osservatore Romano (23/XII/1927),
3.
[166] Cf. Idem, Carta enc. Quadragesimo anno (15 de maio de 1931),
88: AAS 23 (1931), 206-207.
[167] Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 205: AAS 105 (2013), 1106.
[168] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 2: AAS 101 (2009), 642.
[169]Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
231: AAS 107 (2015), 937.
[170] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 2: AAS 101 (2009), 642.
[171] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 207.
[172] São João Paulo II, Carta enc. Redemptor hominis (4 de março de 1979),
15: AAS 71 (1979), 288.
[173] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de
1967), 44: AAS 59 (1967), 279.
[174] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 207.
[175] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 2: AAS 101 (2009), 642.
[181] A doutrina moral católica, na esteira do ensinamento de São
Tomás de Aquino, prevê esta distinção de ato «elícito» e ato «imperado»
[cf. Summa theologiae, I-II, q. 8-17; veja-se também Marcellino
Zalba sj, Theologiae moralis summa. Theologia moralis
fundamentalis. Tractatus de virtutibus theologicis, I (Madrid 1952), 69;
Antonio Royo Marín op, Teología de la Perfección Cristiana (Madrid
1962), 192-196].
[182] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 208.
[183] Cf. São João Paulo II, Carta enc. Sollicitudo rei socialis (30 de
dezembro de 1987), 42: AAS 80 (1988), 572-574; Idem, Carta
enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991),
11: AAS 83 (1991), 806-807.
[184] Francisco, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos
Movimentos Populares (28 de outubro de 2014): AAS 106
(2014), 852.
[185] Francisco, Discurso no Parlamento Europeu (Estrasburgo
– França 25 de novembro de 2014): AAS 106 (2014), 999.
[186] Idem, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo
diplomático (Bangui – República Centro-Africana 29 de
novembro de 2015): AAS 107 (2015), 1320.
[187] Idem, Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova
Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107
(2015), 1039.
[188] Francisco, Discurso aos participantes no Encontro mundial dos
Movimentos Populares (28 de outubro de 2014):AAS 106
(2014), 853.
[189] Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 21.
[190] René Voillaume, Frère de tous (Paris 1968),
12-13.
[191] Francisco, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de
abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 04/V/2017), 17.
[192] Idem, Catequese na Audiência Geral (18 de
fevereiro de 2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 19/II/2015), 20.
[193] Idem, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 274: AAS 105 (2013), 1130.
[194] Ibid., 279: o. c., 1132.
[195] Francisco, Mensagem para o 52º Dia Mundial da Paz de 2019 (8 de dezembro de 2018), 5: L’Osservatore
Romano (ed. semanal portuguesa de 18-25/XII/2018), 9.
[196] Francisco, Discurso no encontro com a classe dirigente (Rio
de Janeiro – Brasil 27 de julho de 2013): AAS 105 (2013),
683-684.
[197] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Querida Amazonia (2 de fevereiro de
2020), 108.
[198] Filme de Wim Wenders O Papa Francisco –
Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018).
[199] Francisco, Mensagem para o 48º Dia Mundial das Comunicações Sociais (24
de janeiro de 2014): AAS 106 (2014), 113.
[200] Conferência dos Bispos Católicos da Austrália (Departamento
para a Justiça Social), Making it real: genuine human encounter in our
digital world (novembro de 2019), 5.
[201] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
123: AAS 107 (2015), 896.
[202] São João Paulo II, Carta enc. Veritatis splendor (6 de agosto de
1993), 96: AAS 85 (1993), 1209.
[203] Como cristãos, acreditamos também que Deus dá a sua graça
para se poder agir como irmãos.
[204] Vinicius de Moraes, «Samba da Bênção», no disco Um
encontro no «Au bon Gourmet» (Rio de Janeiro 02/VIII/1962).
[205] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 237: AAS 105 (2013), 1116.
[206] Ibid., 236: o. c., 1115.
[207] Ibid., 218: o. c., 1110.
[208] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Amoris laetitia (19 de março de 2016),
100: AAS 108 (2016), 351.
[209] Francisco, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de
2020 (8 de dezembro de 2019), 2: L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17-27/XII/2019), 9.
[210] Conferência Episcopal do Congo, Message au
Peuple de Dieu et aux femmes et aux hommes de bonne volonté (09/V/2018).
[211] Francisco, Alocução na Liturgia de Reconciliação (Villavicencio
– Colômbia 8 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1063-1064 e
1066.
[212] Idem, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de
2020 (8 de dezembro de 2019), 3: L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17-27/XII/2019), 9.
[213] Conferência dos Bispos da África do Sul, Pastoral
letter on christian hope in the current crisis (maio de 1986).
[214] Conferência dos Bispos católicos da Coreia, Appeal
of the Catholic Church in Korea for Peace on the Korean Peninsula (15
de agosto de 2017).
[215] Francisco, Discurso no encontro com a sociedade civil (Quito
– Equador 7 de julho de 2015): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 09/VII/2015), 10.
[216] Idem, Discurso no encontro inter-religioso com os jovens (Maputo
– Moçambique 5 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 10/IX/2019), 4.
[217] Francisco, Homilia «dignidade da pessoa e direitos humanos» (Cartagena
das Índias – Colômbia 10 de setembro de 2017): AAS 109 (2017),
1086.
[218] Idem, Discurso no Encontro com as autoridades, o corpo
diplomático e representantes da sociedade civil (Bogotá –
Colômbia 7 de setembro de 2017): AAS 109 (2017), 1029.
[219] Conferência Episcopal da Colômbia, Por el bien de
Colombia: diálogo, reconciliación y desarrollo integral (26 de
novembro de 2019), 4.
[220] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades, o corpo
diplomático e alguns representantes da sociedade civil (Maputo
– Moçambique 5 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 10/IX/2019), 3.
[221] V Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e do
Caribe, Documento de Aparecida (29 de junho de
2007), 398.
[222] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 59: AAS 105 (2013), 1044.
[223] Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991),
14: AAS 83 (1991), 810.
[224] Francisco, Homilia na Missa pelo progresso dos povos (Maputo
– Moçambique 6 de setembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 10/IX/2019), 12.
[225] Idem, Discurso na cerimónia de chegada (Colombo
– Sri Lanka 13 de janeiro de 2015): L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 15/I/2015), 3.
[226] Idem, Discurso no Centro de Assistência «Betânia» (Tirana
– Albânia 21 de setembro de 2014): Insegnamenti II/2 (2014),
288; L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
25/IX/2014), 13.
[227] Idem, Vídeo-mensagem ao encontro internacional TED2017 em Vancouver (26 de
abril de 2017): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 04/V/2017), 16.
[228] Pio XI, Carta enc. Quadragesimo anno (15 de maio de 1931),
114: AAS 23 (1931), 213.
[229] Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de
2013), 228: AAS 105 (2013), 1113.
[230] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades, a sociedade civil
e o corpo diplomático (Riga – Letónia 24 de setembro de
2018): L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
27/IX/2018), 10.
[231] Idem, Discurso na Cerimónia de Boas-Vindas (Tel
Aviv – Israel 25 de maio de 2014): Insegnamenti II/1 (2014),
604; L´Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
31/V/2014), 7-8.
[232] Idem, Invocação na Visita ao Memorial de Yad Vashem (26
de maio de 2014): AAS 106 (2014), 228.
[233] Discurso no Memorial da Paz (Hiroxima –
Japão 24 de novembro de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 03/XII/2019), 12.
[234] Francisco, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de
2020 (8 de dezembro de 2019), 2: L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8.
[235] Conferência dos Bispos da Croácia, Letter on the
Fiftieth Anniversary of the End of the Second World War (1 de maio de
1995).
[236] Francisco, Homilia na Santa Missa (Amã – Jordânia 24 de maio de 2014): Insegnamenti II/1
(2014), 593; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
31/V/2014), 3.
[237] Idem, Mensagem para o 53º Dia Mundial da Paz de
2020 (8 de dezembro de 2019), 1: L´Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 17-24/XII/2019), 8.
[238] Idem, Discurso à Organização das Nações Unidas (Nova
Iorque – Estados Unidos d’América 25 de setembro de 2015): AAS 107
(2015), 1041-1042.
[239] Catecismo da Igreja Católica, 2039.
[241] Francisco, Carta enc. Laudato si’ (24 de maio de 2015),
104: AAS 107 (2015), 888.
[242] Mesmo Santo Agostinho, que elaborou uma ideia da «guerra
justa» que hoje já não defendemos, disse que «matar a guerra com a palavra e
alcançar e conseguir a paz com a paz e não com a guerra, é maior glória do que
a dar aos homens com a espada» (Epistula 229, 2: PL 33,
1020).
[243] Carta enc. Pacem in terris (11 de abril de 1963),
127: AAS 55 (1963), 291.
[244] Francisco, Mensagem à Conferência da ONU finalizada a negociar um
instrumento juridicamente vinculante sobre a proibição das armas nucleares (23
de março de 2017): AAS 109 (2017), 394-396.
[245] Cf. São Paulo VI, Carta enc. Populorum progressio (26 de março de
1967), 51: AAS 59 (1967), 282.
[246] Cf. Carta enc. Evangelium vitae (25 de março de 1995),
56: AAS 87 (1995), 463-464.
[247] Francisco, Discurso na comemoração do 25º aniversário do Catecismo da
Igreja Católica (11 de outubro de 2017): AAS 109
(2017), 1196.
[248] Cf. Congr. para a Doutrina da Fé, Carta aos Bispos a respeito da nova redação do n.º 2267 do
Catecismo da Igreja Católica sobre a pena de morte (1 de
agosto de 2018): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 09/VIII/2018), 6-7 e 10.
[249] Francisco, Discurso a uma delegação da Associação Internacional de
Direito Penal (23 de outubro de 2014): AAS 106
(2014), 840.
[250] Conselho Pontifício «Justiça e paz», Compêndio da Doutrina Social da Igreja, 402.
[251] São João Paulo II, Discurso à Associação Nacional Italiana dos Magistrados (31
de março de 2000), 4: AAS 92 (2000), 633.
[252] Divinae Institutiones 6, 20, 17: PL 6,
708.
[253] Epistula 97 (responsa ad consulta bulgarorum),
25: PL 119, 991.
[254] Epistula ad Marcellinum 133, 1.2: PL 33, 509.
[255] Francisco, Discurso a uma delegação da Associação Internacional de
Direito Penal (23 de outubro de 2014): AAS 106
(2014), 840-841.
[258] São João Paulo II, Carta enc. Evangelium vitae (25 de março de 1995),
9: AAS 87 (1995), 411.
[259] Conferência dos Bispos Católicos da Índia, Response
of the church in India to the present day challenges (9 de março de
2016).
[260] Francisco, Homilia na Missa matutina de Santa Marta (17
de maio de 2020).
[261] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de
2009), 19: AAS 101 (2009), 655.
[262] São João Paulo II, Carta enc. Centesimus annus (1 de maio de 1991),
44: AAS 83 (1991), 849.
[263] Francisco, Discurso no Encontro Inter-religioso (Tirana
– Albânia 21 de setembro de 2014): Insegnamenti II/2 (2014),
277; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
25/IX/2014), 11.
[264] Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 21.
[265] Francisco, Exort. ap. Evangelii gaudium (24 de novembro de 2013),
256: AAS 105 (2013), 1123.
[266] Bento XVI, Carta enc. Deus caritas est (25 de dezembro de
2005), 28: AAS 98 (2006), 240.
[267] «O ser humano é um animal político» (Aristóteles, Política,
parágrafo 1253a, linhas 1-3).
[268] Bento XVI, Carta enc. Caritas in veritate (29 de junho de 2009),
11: AAS 101 (2009), 648.
[269] Francisco, Discurso no encontro com a comunidade católica (Rakovsky
– Bulgária 6 de maio de 2019): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 07/V/2019), 9.
[270] Idem, Homilia durante a Santa Missa (Santiago
de Cuba 22 de setembro de 2015): AAS 107 (2015), 1005.
[271] Conc. Ecum. Vat. II, Decl. sobre as relações da Igreja com
as religiões não-cristãs Nostra aetate, 2.
[272] Francisco, Discurso no encontro ecuménico (Riga -
Letónia 24 de setembro de 2018): L’Osservatore Romano (ed.
semanal portuguesa de 27/IX/2018), 11.
[273] Idem, «Lectio divina» na Pontifícia Universidade Lateranense (26
de março de 2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 09/IV/2019), 6.
[274] São Paulo VI, Carta enc. Ecclesiam suam (6 de agosto de 1964),
54 (101): AAS 56 (1964), 650.
[275] Francisco, Discurso às autoridades (Belém –
Palestina 25 de maio de 2014): Insegnamenti II/1 (2014),
597; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
31/V/2014), 5.
[276] Enarrationes in Psalmos 130, 6: PL 37,
1707.
[277] Papa Francisco e Patriarca Ecuménico Bartolomeu, Declaração conjunta (Jerusalém – Israel
25 de maio de 2014), 5: L’Osservatore Romano (ed. semanal
portuguesa de 31/V/2014), 22.
[278] Do filme de Wim Wenders O Papa Francisco
– Um homem de palavra. A esperança é uma mensagem universal (2018).
[279] Francisco, Exort. ap. pós-sinodal Querida Amazonia (2 de fevereiro de
2020), 106.
[280] Idem, Homilia durante a Santa Missa (Colombo
– Sri Lanka 14 de janeiro de 2015): AAS 107 (2015), 139.
[281] Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 22.
[282] Francisco, Discurso no encontro com as autoridades e o corpo
diplomático (Sarajevo – Bósnia-Herzegovina 6 de junho de
2015): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
11/VI/2015), 3.
[283] Idem, Discurso no Encontro internacional organizado pela
Comunidade de Santo Egídio (30 de setembro de 2013): Insegnamenti I/2
(2013), 301-302; L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa
de 06/X/2013), 11.
[284] Francisco – Ahmad Al-Tayyeb, Documento sobre a fraternidade humana em prol da paz
mundial e da convivência comum (Abu Dhabi 4 de fevereiro de
2019): L’Osservatore Romano (ed. semanal portuguesa de
05/II/2019), 22.
[286] Cf. Carlos de Foucauld, Meditação sobre o Pai Nosso (23
de janeiro de 1897): Opere spirituali (Roma 1983), 555-562.
[287] Idem, Carta a Henry de Castries (29 de
novembro de 1901).
[288] Idem, Carta a Madame de Bondy (7 de janeiro
de 1902). Assim o designava também São Paulo VI, elogiando o seu serviço: Carta
enc. Populorum progressio (26 de março de
1967), 12: AAS 59 (1967), 263.
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