O triunfo de Júlio Cardoso...
Conseguir que a Seiva Trupe prosseguisse e
continuasse a ser o que (quase) sempre foi: um estandarte da Cidade e do Norte.
É este o grande triunfo de Júlio Cardoso.
Quando, em Setembro de 2018, o Júlio Cardoso me deu a honra de me convidar
para lhe suceder na direcção artística da Seiva Trupe-Teatro Vivo, não só
fiquei estupefacto, como cheio de dúvidas, mas, como combinámos, não foram
precisas mais de 48 horas para deitar mãos ao trabalho, embora, por
compromissos que eu já tinha, só em Abril de 2019 se formalizasse a situação.
Facto, aliás, que se revelou muito útil para preparar e fazer a transição. De
lá para cá, e com a Covid pelo meio, a Seiva Trupe foi conseguindo ganhar
grandes batalhas, mas a verdade é que enormíssima parte só é possível pelo que
foi o seu passado, com momentos melhores e momentos piores, mas sendo um
símbolo da cidade, que, a nível de popularidade, me atreveria a dizer (e não
foi obra minha) se segue imediatamente ao F. C. do Porto e ao Mercado do
Bolhão, como símbolos da Cidade.
Poderia aqui elencar as vitórias dessas
grandes batalhas, onde a maior de todas é voltar a ter sala de residência
permanente. Mas não venho nem fazer auto-elogios (meus ou da própria Seiva
Trupe), até porque o maior e definitivo elogio será o de reconquistar e
conquistar novos públicos. Esse é o seu desígnio, tal como elegi no seu novo
slogan, como seu propósito, o de fazer arte. A grande batalha só agora começou
e não se vence em um, dois ou três anos. Vai-se vencendo e deve-se a muitos,
que para tal contribuem: quer internamente, quer à volta, quer mesmo de outras
paragens. Desde logo – e seria injusto não o destacar: a forma como a trataram
e acolheram quer o Perpétuo Educação e Cultura, quer a Câmara Municipal do
Porto com o seu Presidente logo na primeira hora.
Mas em vésperas de estrear Bairro
Noite e Dia (dia 7 e com a carreira a terminar a 31*) já com a estreia
e o segundo dia esgotados (à hora em que escrevo) e com marcações feitas para
todas as sessões, não é a exaltação disso que me traz a estas páginas, nem o
facto de eleger para o meu próprio TOP3 da minha carreira esta
encenação, mas o próprio Júlio Cardoso. E poderia ser na forma brilhante como
pisa o palco, a que junta ao seu valor intrínseco a plasticidade, de que só os
grandes são capazes, de se integrar numa gramática teatral estética homogénea e
que não era tradicionalmente a sua, ‘continuando a dar cartas’ num espectáculo
que muito vale, quase tudo, por essa homogeneidade e capacidades do elenco, a
um nível já muito alto. O que aqui me traz – e não é mérito (só) meu – é o que
veio demonstrar-se como ‘a’ escolha inteligente e generosa como foi buscar,
imprevistamente, o seu ex-discípulo querido, eu, mesmo que pelo meio tenham
existido rupturas estéticas e abordagens do teatro. Mas que, no fim, são menos
do que o que nos une, reafirmado nesta herança chamada Seiva Trupe-Teatro Vivo
e que permanece viva e cada vez mais.
Foi a percepção de que para a ‘sua’ Seiva
resistir a tantos tratos de polé que sofrera na última década e renascer e
renovar-se, pondo à frente da vaidade (dominante no meio) de querer ver a morte
da criatura depois do seu criador a abandonar, é um acto que junta
inteligência, generosidade e a prova do verdadeiro amor e do saber com que a
construiu em quase meio-século já passado. Não o digo em homenagem, até porque
sei que posso continuar a contar com ele para outros sucessos da Seiva Trupe
que se adivinham e que alguns deles ainda conseguirão espantar os agnósticos
disso ou mesmo aqueles que, mediocremente, ambicionavam que ela desaparecesse.
Digo-o porque, mais do que todos os grandes êxitos que a Seiva Trupe-Teatro
Vivo teve no seu ‘consulado’ e sobre os ombros da sua criatividade e da sua
capacidade operativa, repartidas em várias partes com o António Reis, a ousadia
do convite traduziu o desejo inquestionável de que a criatura fosse para lá do
criador, prosseguisse e continuasse a ser o que (quase) sempre foi: um
estandarte da Cidade e do Norte. É este o grande triunfo de Júlio Cardoso. Que
transcende o próprio, mas por vontade do próprio, tornando-o, ainda mais, a
referência definitiva da Seiva Trupe-Teatro Vivo nas linhas que esta ocupar (e
já ocupa) na memória do Teatro Português.
E quando chegar a minha hora, depois de
ter sabido conseguir atingir as metas a que me propus (incluindo a de sementes
que só florescerão depois de mim), voltarei a tornar-me seu discípulo para ter
a mesma lucidez de saber o momento de passar de mãos a direcção artística, com
a mesma atitude de normalidade e sem intromissão, tal como o meu Mestre o fez
comigo.
Poderia dizer que, num certo sentido, este triunfo de Júlio Cardoso é também
uma bofetada de luva branca a muitos dos seus detractores, no meio. Mas prefiro
dizer que foi o maior afago que tornou público o seu amor à Seiva Trupe, ao
Teatro, ao Porto. E às suas tão peculiares Gentes.
Castro
Guedes
6 de Outubro de 2022
Artigo de opinião no jornal Público
https://www.publico.pt/2022/10/06/culturaipsilon/opiniao/triunfo-julio-cardoso-2022997
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