quarta-feira, 7 de junho de 2017

MEMORIAS DE UM SOBREVIVENTE - Premonição - I - Casos da Vida Real vividos

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I

PREMONIÇÃO

Em meados do século passado, nos meios rurais distantes dos grandes centros, eram poucas as famílias com recursos para assegurar a continuação dos estudos dos filhos após a instrução primária.
Esta limitação abrangia mesmo a classe média.
O médico de Vilarinho da Castanheira, Nordeste Transmontano, internou o filho mais velho num colégio na cidade do Porto, mas quando o filho que se lhe seguia concluiu a instrução primária teve de alugar uma casa, no Porto, Travessa Nossa Senhora da Conceição, pois havia que pensar  na continuação dos estudos duas raparigas mais novas.
A esposa ficou com os filhos e ele regressou às suas atividades na aldeia.
O mais velho continuou matriculado no Colégio Almeida Garrett como aluno externo, o mais novo frequentou o 1º.ano da Escola Comercial Raul Dória, na Rua Gonçalo Cristóvão e a Escola Comercial Oliveira Martins na Rua do Sol nos anos seguintes. As irmãs a Escola Primária mais próxima.
A vida solitária do médico na aldeia durou poucos anos.
Adoeceu gravemente e a esposa teve de regressar para cuidar dele.
A partir daí as filhas ficaram numa pensão e os filhos noutra. As preocupações aumentaram e as despesas também.
O mais velho, bom aluno até aos primeiros anos de Medicina, novas convivências - particularmente femininas - originaram resultados cada vez mais fracos.
Para o Luís aulas, disciplinas, estudar sempre foi uma grande "seca", chegava mesmo a não comprar os livros de algumas disciplinas.
Com frequência substituía as aulas pelo bilhar, passeio, Biblioteca Municipal no Jardim de S. Lazaro e também pelas livrarias.
As irmãs eram também diferentes uma da outra. A mais nova identificava-se com o irmão mais velho, a mais velha era mais próxima do irmão mais novo, embora distante dos seus excessos.
Certa manhã, o médico acordou mais cedo que o habitual, ainda de noite. Teve um grande sobressalto e não resistiu a acordar a mulher para lhe dar conta do mesmo:
-Aconteceu coisa grave ao Zito.
A mulher retorquiu:
- Ó homem, dorme, andas tão preocupado com eles e nem descansas...
Mas ele insistiu:
- Tive um pressentimento... O Zito está mal. Temos que telefonar.
O telefonema confirmou que o Zito estava realmente bastante mal.
Tudo começou com uma grande constipação, muita tosse, temperatura muito alta, acabando por jorrar sangue ao tossir.
Havia tuberculizado anos antes, tratava-se de uma recaída.
 Muito descanso, bem medicado, recuperou.
Um conjunto de bons amigos visitavam-no diariamente e mais que uma vez por dia. Todos o ajudaram imenso das mais diversas formas.
Um lera-lhe O Tempo e o Vento, de Eurico Veríssimo, centenas de páginas. Era um criativo, destacou-se como empresário de sucesso.
Outro declamava-lhe poesia, destacou-se como ator e encenador largamente premiado. Foi um dos fundadores da Companhia de Teatro Seiva Trupe, Juntamente com dois amigos do mundo artístico.
Outro, trabalhava e estudava, era de todos o mais organizado e atilado, constituiu uma Sociedade de Revisores Oficiais de Contas.
Outro, embora proibido pela mãe por natural receio de contágio - a tuberculose é altamente contagiosa - mesmo assim, ali estava também todos os dias, sempre com uma boa disposição contagiante.
Muitos outros, colegas e amigos, por ali passaram aliviando o seu sofrimento.
O pai foi nessa manhã para o Porto e nesse mesmo dia internou-o no Sanatório Rodrigues Semide.
O contributo do Sr. Fleming com a descoberta da penicilina e de todos aqueles que em condições adversas se entregaram à investigação de outros produtos, foram decisivos para vencer uma doença, até então, mortal.
A mesma que vitimou os pais da mãe do Luís, deixando-a órfã aos 3 anos.
Apesar de ser mais complicado desta vez, o Luís melhorou bastante.
Chegada a primavera foi para aldeia onde tinha boa alimentação e bons ares.
Só precisava descansar. Com a ajuda da medicação, teria tudo para recuperar.
Naquela terra nada acontecia e sossego não era com ele. Ouvia rádio, lia e passeava a cavalo, por vezes de forma desabrida, numa belíssima égua.
Sem se saber porquê a tosse regressou subitamente, acompanhada das hemoptises.
Teve de vir um especialista do Caramulo, numa noite de tempestade, por estradas intransitáveis, para o submeter a um pneumotórax (consiste em insuflar ar entre a pleura e o pulmão, comprimindo assim este órgão).
O objetivo de tal compressão é fechar o vaso doente e assim suster o derrame de sangue.
O médico, com uma estranha boa disposição, atendendo ás circunstâncias, não deixou de avisar que aquele tratamento era muito arriscado. Aconselhou o seu internamento no sanatório, mal recuperasse forças para a viagem.
Entretanto, perguntou por presunto, champanhe, pão e queijo…. Comeu, bebeu e convidou o seu doente a fazer o mesmo. Nada lhe faria melhor que um bom presunto e uma boa “pinga”, dizia.
No dia seguinte as hemoptises regressaram com mais violência. O médico foi de novo chamado e não havendo outra forma de estancar o sangue, jorrava sempre que tossia, antes de repetir o tratamento da véspera, único possível, avisou o colega que o mesmo tanto podia ajudar, como matar o rapaz. Era urgente leva-lo para o Sanatório, o que teve lugar no dia seguinte.
Seguiram de táxi para a Estação do Tua e de comboio para S. Bento - embora não fosse permitido viajar de comboio naquelas condições - para dar de novo entrada no Sanatório Rodrigues Semide.
Não havia medicamentos que atenuassem a tosse nem hemostáticos que contivessem um fio de sangue teimava em escorrer pelo canto da boca.
Passou a ser alimentado com soro, frequentes transfusões de sangue e a respirar com ajuda de oxigénio.
Lentamente, foi perdendo a fala, a visão, os movimentos e deixando de se alimentar.
O dedo com que, num alfabeto, indicava aquilo que pretendia acabou por ficar imóvel.
 Lúcido, perdeu toda a ação, sentiu a morte apoderar-se rapidamente de todos os seus órgãos.
Segue:

II

A SENTENÇA DE MORTE