domingo, 18 de junho de 2017

MEMÓRIAS DE UM SOBREVIVENTE - O amanhecer de um novo dia - IV - casos da vida real vividos



Pintura de fotos 
Engª.Virginia Moura e Arqº.Lobão Vital

IV
O AMANHECER DE UM NOVO DIA
Acordou sereno, com menos dores, a luz da manhã a querer romper-lhe as pálpebras, a querer mover-se, com vontade de falar com a Mãe, sempre ali ao seu lado, de a animar, dizer-lhe que tinha descansado!
Sempre que o médico entrava pressentia-o aos pés da cama.
Naquela manhã divisava-lhe vagamente os contornos em contraluz. A luminosidade da janela, mesmo à sua frente, embora atenuada por uma frondosa árvore, continuava a impedi-lo de abrir os olhos
Sentiu necessidade de chamar o médico. Lá conseguiu esboçar um pequeno aceno com o dedo indicador.
Não queria acreditar no que se estava a passar. Era a silhueta do médico, o movimento do dedo indicador, a vontade imensa de falar, de saber o que lhe tinham dado para finalmente descansar.
Teve de insistir no chamamento, o médico acabou por reparar, venceu uma certa resistência e lá se aproximou:
Também o médico estava cada vez mais perplexo:
-Então o que é que te deu? Sabes que esta noite, não deixaste ninguém descansar nesta casa?
O Luis ouviu incrédulo. Não era possível! Dormira tão bem!  
Só não conseguia articular uma palavra.
O médico apercebeu-se da dificuldade e continuou, para lhe dar tempo:
-Arrancaste todos os tubos, querias levantar-te, ir embora, foi um pavor, ninguém te conseguia segurar, ninguém teve descanso.
A Mãe, ali sentada, só dizia:
-Assustaste-nos tanto, filho.
Nunca tivera uma noite assim!
A excitação, a violência e o completo descontrolo do Zito representaram para ela a agonia de um moribundo.
Quando finalmente se imobilizou, foi o estertor final, o exalar do último suspiro.
Também nunca tivera uma manhã tão inesperada!
Ali estava o Zito a reconhecer tudo á sua volta, a mover-se e a querer falar. Não lhe escapou a alegria dos companheiros de doença que invadiram a janela do quarto e não escondiam a surpresa em contemplar um “ressuscitado”!
O Luís passara a noite suspenso na linha que o separa da eternidade; interrompeu no limite uma viagem sem regresso.
Sentia agora o ar invadir-lhe os pulmões e dilatar-lhe o peito, começava a respirar o ar que Deus lhe deu, á mistura com o tubo de oxigénio.
Retomou a fala. A muito custo colocou a sua pergunta ao médico:
-O que me deram para descansar?
O médico atónito:
-Descansar?! Já te disse que aqui ninguém descansou, nem mesmo tu!
Recomeçou a viver.
Já podia voltar-se e deitar-se de lado, as chagas das costas e das nádegas passaram a dar-lhe mais sossego.
Participava nas conversas com os pais, o irmão, com os companheiros de doença e com os amigos que o visitavam.
Todos lhe faziam a melhor companhia.
À refeição nada lhe despertava mais o apetite que um bom copo de vinho branco.
Ganhara novos amigos:
Destacava-se  o Arqº. Lobão Vital, internado sobe prisão e vigiado pela PIDE, foi das melhores companhias e deixou-lhe a melhor recordação. 
De uma serenidade que transmitia paz, uma cultura superior que muito me ajudou nas opções de leitura, um firme defensor dos " Direitos do Homem"  e dotado do mais elevado sentido do humano.
O Luís logo que começou a levantar-se e a fazer pequenos percursos passou a visitar os companheiros acamados.
Entre eles destacava-se o Bélinho que há anos sofria de artrite crónica incurável encontrando-se numa situação de dependência total.
Era ainda jovem. Impressionava muito ver que as suas pernas e os seus braços mais pareciam raízes de oliveira de tão retorcidos, agarrados a um tronco bem constituído.
O sofrimento dominava aquele homem noite e dia. Apesar disso, mantinha um sorriso permanente, enigmático, sofredor, assim como a ironia duma revolta incontida.
Ao entrar naquele quarto não sabia que dizer. Tudo lhe soava a ridículo: «Está bom?»; «Está melhor?»; «Como vai isso?».
Nada fazia sentido, até porque o Bélinho desejava a morte.
 Optou por uma vaga saudação:
-VIVA!
Não para o contrariar na sua vontade…também não faria sentido desejar-lhe o contrário…
Agora entendia melhor a dificuldade de muitas das visitas que recebia e que ali ficavam, a olhar sem saberem que dizer.
Mas o Bélinho era muito diferente de tudo que conhecia.  Contava anedotas picantes e gostava ainda mais de as ouvir. Perdia-se com a retórica do Amadeu que sem dó nem piedade fazia humor da sua enfermidade, das deformações dos braços e das pernas. O Bélinho ria desalmadamente, de forma desesperada, ao ponto de ficar todo encarnado, com os olhos esbugalhados, chorava de tanto rir, babava-se, excitado dizia tudo quanto lhe vinha á cabeça… um bando de palavrões.
Quando finalmente se acalmava precisava que lhe limpassem as lágrimas e a baba e o suor.
O Amadeu também se encontrava ali internado. Era um jovem genial. Revelou-se como: radialista, autor, compositor, declamador e ator.
Amigo pessoal do mestre António Pedro fundou com ele o Teatro Experimental do Porto, foi o seu braço direito, ajudou muitos atores, empurrando-os para o palco e cantores, escrevendo-lhes as letras das canções.
A única coisa que o Bélinho ainda conseguia fazer, a muito custo e com sacrifício, era fumar um cigarro. A palma da mão, dobrada de tal forma para baixo, quase encostava ao braço e os dedos retorcidos no sentido das costas da mão lá fixavam, com grande dificuldade, o cigarro.
Não conseguia evitar que a cinza caísse no peito, queimava-o mas não reagia. Era uma dor menor relativamente ao tormento que nenhum analgésico atenuava.
Para o Luís sobreviver foi a magia de um novo amanhecer, o encanto da descoberta do chilrear dos passarinhos, da beleza dum malmequer, saborear um pão de trigo, acabado de cozer e recheado de mel; adivinhar o que causa alegria aos que nos rodeiam e evitar o que os entristeça; cumprimentar quem passa e fazer desse mesmo “o próximo”, sem sentimentalismos, quer dizer, não permitir que o nosso amor ao próximo se esvazie ao menor receio… ou ao adivinhar interesses pessoais ameaçados.
Nunca entendeu como podia alguém desejar a morte? Talvez porque nunca experimentou o sofrimento e a falta de esperança do Bélinho.
Outra coisa será viver com espírito fraterno, optar pelo caminho que mais agrada a Jesus, como forma de estar preparado para, a qualquer instante, partir rumo à eternidade. Será esse o caminho da felicidade?
O seu médico assistente, o especialista convidado bem como o pai do Luís nunca entenderam a sua recuperação. Também não o consideravam livre de perigo.
O descanso após as refeições passou a ser feito numa espaçosa e aprazível varanda refastelado numa cómoda espreguiçadeira, onde dava cor a fotografias a preto e branco.
Os exames radiológico continuavam a revelar sérios problemas nos brônquios e pulmões. Tudo apontava para a necessidade de intervenção cirúrgica. Consistia a mesma em remover duas a três costelas numa primeira fase e depois desta intervenção se encontrar consolidada, haveria que remover mais duas ou três costelas para que o pulmão ficasse devidamente acomodado.
Disto resultaria um ombro mais alto que o outro.
O médico assistente deu-lhe conta de toda a situação. 
A resposta do Luís não se fez esperar:
- Quanto mais depressa for operado melhor.
Hesitante estava o médico. O rapaz era muito novo para ficar assim deformado e decidiu:
- Vamos esperar um mês e no final avalia-mos de novo a situação.
Decorrido o mês a recuperação foi de tal forma que dispensou qualquer intervenção cirúrgica.
Para espanto de todos o Luís começou a fazer uma vida praticamente normal .
Na sua terra natal já tinham mandado rezar uma missa pela sua alma!
Não queriam acreditar que o Zito estava vivo.


Vivo! só por milagre!